Na noite desta quinta-feira (11), a 27ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo, no espaço Senac, foi palco de uma conversa profunda e transformadora sobre literatura e prevenção. O evento reuniu duas importantes vozes: a jornalista Roseli Tardelli, diretora da Agência de Notícias da Aids e autora do livro O Valor da Vida – 10 Anos da Agência Aids, e a escritora Helena T., autora de Ilhéus. Roseli compartilhou sua experiência e trajetória, unindo a literatura e a luta pela conscientização sobre o HIV e Helena fechou a discussão com a leitura de um trecho do seu livro, cujo enredo retrata personagens que vivem com HIV.

Roseli contou ao público da Bienal que abraçou a causa da luta contra a aids ainda nos anos 1990, depois que perdeu o seu único irmão, o tradutor Sérgio Tardelli, em decorrência da aids.

Na época, os convênios médicos não atendiam pessoas com HIV/aids. Sua família enfrentou uma dura batalha jurídica para que o plano de saúde cobrisse os custos do tratamento, tornando-se a primeira a questionar publicamente a atuação de um convênio médico no país. Sérgio faleceu em 1994, dois anos antes do surgimento dos tratamentos mais eficazes contra a aids. No entanto, sua luta inspirou muitos a reivindicarem seus direitos. “A justiça foi muito decente conosco. Ganhamos em primeira instância, eles recorreram, e ganhamos de novo. Isso virou jurisprudência e ajudou muitas outras pessoas a garantir o direito de viver suas dores com dignidade. Esse foi o grande legado do meu irmão.”

No bate-papo, Roseli refletiu sobre os desafios dos primeiros anos da epidemia de HIV, quando o diagnóstico da doença era sinônimo de morte. “Vivemos quatro décadas de HIV, e infelizmente, fomos impactados pela década da tragédia, as pessoas morriam em meses. Hoje, felizmente, isso mudou, graças à ciência. Conheço muitas histórias de pessoas que tomavam até 20 medicamentos por dia. Agora, a vida com HIV é muito diferente. Tomam-se um ou dois comprimidos, e tudo bem. Mas o importante é chegar às pessoas antes que o HIV as alcance. Esse é o verdadeiro segredo”, destacou.

Do jornalismo diário ao advocacy

Com uma carreira consolidada em grandes veículos de comunicação como a Rádio Eldorado e o programa Roda Viva, da TV Cultura, Roseli viu sua trajetória profissional mudar após a perda do irmão. “Era difícil pensar em deixar o jornalismo tradicional, mas depois da morte do Sérgio, aquele vazio começou a crescer, e o jornalismo como eu conhecia deixou de fazer sentido”, revelou. Foi esse sentimento que a motivou a criar a Agência Aids e a transformar sua dor pessoal em um projeto de vida, voltado para a conscientização e prevenção. “Quando o Sérgio soube que tínhamos ganho a causa na Justiça, ele perguntou: ‘E os outros?’ Essa pergunta me acompanha até hoje, e minha vida se tornou a busca por essa resposta”, disse Roseli, emocionada.

Roseli começou com o 1º Fórum Aids, Imprensa e Cidadania, em 1998, e, cinco anos depois, fundou a Agência de Notícias da Aids. A plataforma se tornou uma referência nacional na divulgação de informações sobre o HIV, auxiliando a mídia e a sociedade a se informar e debater a questão com seriedade e empatia.

Comunicação correta

Durante o evento, a jornalista criticou o início da cobertura da imprensa sobre o HIV, que contribuiu para estigmatizar a doença. “No começo, ninguém sabia o que estava acontecendo. Lembro de uma manchete no Jornal do Brasil: “Nova doença atinge homossexuais nos Estados Unidos”. Era um câncer que parecia atingir apenas homens gays. Mas como assim? Como uma doença pode ser restrita a um grupo? Faltou perguntas, essa comunicação equivocada criou estigmas como “câncer gay” e “grupo de risco”. Na verdade, a vulnerabilidade ao HIV é de todos nós. No Brasil, temos o Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas, composto por cerca de 400 mulheres vivendo com HIV que fazem ações de prevenção por todo o país. O HIV não era um câncer gay? Como chegou nas mulheres? Quando crianças começaram a nascer infectadas, descobriu-se que o vírus havia se espalhado entre mulheres também. A comunicação correta é essencial. Vulnerabilidade é o ponto, não comportamento de risco.”

Roseli destacou que a mídia, quando bem informada, pode ser uma aliada no combate à epidemia. “Criamos a Agência Aids para trazer de volta à mídia a questão do HIV de forma mais cidadã, criativa e solidária. Nosso trabalho com a agência tem sido esse: ser uma referência confiável para a mídia.”

HIV e literatura

A escritora Helena T. fechou o debate com a leitura de um trecho de seu livro Ilhéus. A obra nasceu depois de sua participação na Festa Literária de Parati, onde esteve presente no lançamento de O Valor da Vida, seguido de um bate-papo com mulheres que vivem com o HIV.  “Quando nos identificamos com algo, sentimos a responsabilidade de disseminá-lo, de deixar essa marca no mundo. Como escritora, meu caminho foi a ficção. No meu livro, Heitor e Davi são um casal que descobriu o amor muito cedo, ainda na adolescência. Eles foram traídos duas vezes, primeiro pelo preconceito e depois pela doença.

Helena escolheu um trecho do seu livro para compartilhar com a plateia. “Ah, meu amor, será que você entende o que fez comigo quando entrou por aquela porta? Por Deus, fiquei suspensa. Tudo aqui dentro se agigantou. As paredes, a claridade, até eu me senti imenso. Enquanto tudo mais transbordava, senti uma leveza no peito que nunca havia experimentado. Tinha sabor, cheiro de alegria. Seu rosto… Ah, o seu rosto, tantas vezes desenhado nas minhas lembranças. Eu queria trazê-lo para perto, segurá-lo com minhas mãos quase sem vida. Queria torná-lo inteiro e meu, como sempre foi. Não, eu não fiquei bem depois que você se foi. A vergonha logo me tomou. Meu desleixo, essa maldita doença… Por isso te implorei que fosse embora. Como uma criança que cobre os olhos achando que ninguém a vê, você cruzou os braços sobre o rosto. Eu tremia de agonia, mas agora entendo que aquilo era felicidade. Será que você entende, Heitor, o que fez comigo quando entrou por aquela porta? Vi seu rosto através das lágrimas, como se estivesse vendo através de um vidro quebrado. Mas era isso que eu queria tocar: seu rosto, seu cheiro, seu sorriso. Obrigado, meu amor. O fim de Deus.”

“A literatura tem o poder de transformar percepções e humanizar realidades que muitas vezes são negligenciadas”, disse Helena.

O bate-papo na Bienal foi mais do que uma troca de experiências literárias; foi uma reflexão sobre vida, legado e resistência, reafirmando a esperança de que a informação e a literatura continuem sendo aliadas poderosas na prevenção e no combate ao HIV.

A 27ª Bienal Internacional do Livro de São Paulo segue até 15 de setembro e espera atrair cerca de 660 mil visitantes.

Redação da Agência de Notícias da Aids

 

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