judicialização da saúde

Na última semana, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) promoveu a Jornada de Saúde, para criação de enunciados a fim de orientar juízes sobre as demandas de saúde pública e suplementar. Por mais admirável que seja o trabalho do CNJ e que se reconheça que o órgão está olhando com outros olhos o mercado de saúde suplementar, esse tipo de medida não parece efetivamente melhorar a judicialização da saúde e o mercado em geral.

Os enunciados são bem elaborados, debatidos, mas não há nenhum sinal de que eles serão aplicados pelos juízes de primeira instância. Estes já possuem os instrumentos adequados para julgar as demandas. O ministro do STJ Antonio Saldanha Palheiro, em recente evento na Escola Paulista da Magistratura sobre desjudicialização da saúde, pontuou de forma muito clara: nenhum juiz decidirá contra uma pessoa que alega estar correndo risco de vida, a não ser que tenha plena segurança de que aquela alegação não é verídica.

Judicialização é um volume de ações da mesma demanda, é um fenômeno. Ela evidencia onde estão as falhas de mercado que precisam ser sanadas e onde estão as dores de todos os agentes. O ministro Dias Toffoli, do STF, no lançamento do Anuário da Justiça de 2024, lembrou muito bem que se tudo vai parar no Judiciário, o problema não é dos juízes, mas sim da sociedade. É ela quem deve rever o seu papel.

A judicialização precisa ser encarada como o reflexo de demandas sociais que deveriam ser solucionadas pela regulação, seja qual for a forma como ela se manifesta: autorregulação ou regulação por meio de agência. Fato é que chegam ao Judiciário questões que não são solucionadas pela regulação, criada exatamente para tutelar mercados com tais complexidades.

Se os enunciados não fazem uma efetiva diferença para o real problema do volume de ações, qual a justificativa para investir tanta energia em tentar reduzir o volume de casos que já estão no Judiciário o invés de utilizar os números que a judicialização nos apresenta e criar instrumentos jurídicos para que essas demandas não cheguem ao Judiciário? E não estamos falando aqui em impedir o direito de ação de nenhuma pessoa, o que seria um absurdo.

Do lado dos beneficiários, falta orientação, falta escuta, falta trazer esse beneficiário para que ele entenda o que está comprando e participar das discussões nos órgãos decisórios. Falta a compreensão de que plano não significa “paguei toda a vida e agora quero usar”. É preciso que os beneficiários entendam o racional do rol de coberturas, como é calculado o preço da mensalidade, como é a fiscalização da ANS, entre outros pontos. O diálogo precisa acontecer.

Do lado das operadoras, a verdade é que não há mais espaço seguro para o debate. Elas estão rotuladas como vilãs do mercado, o que é terrível para a prestação do serviço. A desconfiança parte do início da relação e não há segurança para nenhuma das partes. As operadoras precisam ter um espaço seguro para exporem suas posições em debates francos e abertos. Afinal, é elas quem prestam o serviço e, se não houver incentivo para tanto, o prejuízo será de toda a cadeia.

Do lado dos prestadores, é preciso entender seus reclamos mas que eles também entendam o funcionamento do serviço do qual estão se propondo a participar. Não se trata de um sistema predatório em que se pede o máximo possível, o mais caro, com estímulo ao gasto maior. O foco deve ser a necessidade do paciente de acordo com as melhores práticas, dentre elas a sustentabilidade. Os prestadores não podem ter a última palavra sobre a decisão para o tratamento do paciente e isso precisa urgentemente mudar, pois é muito poder para uma única parte da cadeia. A orientação ao beneficiário seria de grande ajuda aqui também.

Destaque-se também a importância de um olhar para os vendedores de planos de saúde, em suas mais diversas modalidades, para que eles tenham a obrigação de prestarem a informação mais completa e adequada aos consumidores, orientando sobre o melhor produto de acordo com as necessidades do beneficiário e não de acordo com o melhor prêmio que ele próprio receberá.

Por fim, tudo isso passa necessariamente pelo fortalecimento da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que necessita de investimentos e instrumentos jurídicos para uma maior efetividade de sua atuação. Para que ela consiga fiscalizar as empresas que não atuam de acordo com as regras e premie aquelas que estão em conformidade regulatória.

A judicialização não se resolve com mais controle sobre os juízes e suas decisões, mas sim com melhores práticas no mercado para evitar que as demandas cheguem ao Judiciário. Repise-se: a judicialização é fruto das demandas sociais que a regulação não conseguiu evitar. Ela é a febre de um sistema com vários problemas. E sim, existe solução, mas ela demanda trabalho e muito esforço. É essencial poupar energias e focar nas medidas que se sabe, apesar de difíceis, implicam em resultados a longo prazo mais interessantes para o mercado de saúde como um todo.

Fonte: JOTA