Há mais de 30 anos a ciência propicia vida normal a pessoas com HIV e agora ganha o reforço de dois novos medicamentos. Ao mesmo tempo, a comunidade discute o ‘paciente de Genebra’, sexto caso de remissão graças a um transplante de medula. Quem convive com o vírus cita esperança e fôlego contra o preconceito

Sistema Único de Saúde oferece novo medicamento contra o HIV: David Oliveira aguarda o composto, prometido para dezembro (Crédito: Jardiel Carvalho)

“Não vejo a hora de mudar minha dose de vida”, diz David Oliveira, de 31 anos, comunicador social que vive com o vírus da imunodeficiência humana (HIV) há quase uma década. Ele apelidou seus antirretrovirais de ‘doses de vida’, pois por meio deles compreendeu que seu diagnóstico não é uma sentença de morte. Ele é um dos pacientes que aguarda a chegada do Dovato, novo medicamento que será incorporado ao Serviço Único de Saúde (SUS) até dezembro.

“Esse remédio veio para facilitar, porque será um comprimido por dia”, afirma. De fato, a novidade traz esse alento a quem vive com o vírus. Dovato é a combinação dos antirretrovirais dolutegravir e lamivudina em um único comprimido, o que simplifica a terapia no dia a dia.

A infectologista Luiza Samaha França destaca que a nova opção também traz menos efeitos colaterais. “Tudo facilita a aderência ao tratamento. Esse é um grande problema quando falamos sobre HIV”, observa a profissional do Hospital Evangélico de Sorocaba.

Há anos, a ciência consegue propiciar vida normal e controle da carga viral baixa aos portadores de HIV, mas a realidade esbarra na cruel estatística: muitos não seguem as diretrizes médicas devido aos efeitos colaterais – náusea e ganho de peso, principalmente.

As inovações recentes significam então um reforço para combater a falta de adesão. Além do Dovato, há o cabotegravir: primeiro medicamento injetável contra o HIV no Brasil.

Aprovado pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), é uma profilaxia pré-exposição (PrEP), ou seja, tem uma função de prevenção contra eventuais infecções. “O interessante é que é uma droga injetável. E as doses primárias são duas: toma uma e repete depois de um mês. Após isso, a injeção é a cada dois meses. Até agora o que se tinha de PrEP era droga oral que precisava ser tomada todos dias”, explica a médica.

“No Brasil, morrem 14 mil pessoas por ano de Aids. Como um País com o melhor tratamento do mundo e de graça tem esse número? Discriminação explica.”
— João Geraldo Netto, criador do canal Super Indetectável

Enquanto esses avanços na prática cotidiana são notícias que confortam, a comunidade científica esmiúça o “paciente de Genebra”. Na Suíça, um homem apresentou remissão do HIV após receber um transplante de medula óssea.

É o sexto caso no mundo, mas com um diferencial que instiga especialistas. Anteriormente, o bom resultado se dava porque pacientes recebiam medula de um doador com rara mutação genética — chamada de CCR5 delta 32 ­— que tornava as células do corpo resistentes ao HIV. No entanto, o “paciente de Genebra” fez um transplante de célulatronco e recebeu a doação de uma medula que não tem a tal mutação.

Mesmo assim, após 20 meses sem o tratamento, o vírus não foi detectado em seu corpo. “Isso abre portas para outros estudos e novas indagações”, sintetiza a infectologista. O anúncio traz um novo caminho para pesquisas, e a ocorrência deve ser monitorada rigorosamente por meses e anos a fio.

Assim, os estudos para entender e combater o HIV progridem com o entendimento da forma de contaminação. Médicos e pacientes encaram os progressos com ânimo, e, igualmente, com muita consciência.

“Apesar de termos esse caso de Genebra, isso não é um protocolo. Transplante de medula óssea tem seus riscos, é preciso submeter-se à quimioterapia, o indivíduo fica com imunidade rebaixada, há perigo de infecção e complicações do próprio transplante. Além de tudo, não possuímos a certeza absoluta de que é algo que vai funcionar para todo mundo”, discorre a infectologista.

“Hoje não temos cura estabelecida. Tivemos, sim, casos que abriram janelas e portas, e dispomos drogas eficazes. Mas o principal — não somente para o HIV, mas para todas as infecções — é a prevenção. Pode ser medicamentosa, por hábitos. Não se deve deixar nada de lado por conta de avanços, profilaxia ou possível cura futura.”

Em São Paulo, David Oliveira recebe tais desenvolvimentos e tecnologias com esperança. Criador do Projeto Doses de Vida, para amparar quem recebeu o diagnóstico, atua com frequência no Grupo de Incentivo à Vida. A organização não governamental oferece ajuda para pessoas com sorologia positiva ao HIV.

O que ele vê diariamente são as consequências da pandemia dos anos 1980. “O HIV é uma doença social. Imagine como é viver diante desse estigma? Herbert Daniel e Betinho [Herbert José de Sousa], que viveram com o vírus nos anos 1990, falaram muito sobre a morte social. Ainda lidamos com isso hoje, o que influencia na adesão ao tratamento”, aponta o ativista.

“Eu trabalho com essa ressignificação, por isso chamo meus antirretrovirais de ‘doses de vida’. Tomo para viver, concretizar meus sonhos e objetivos, para amar e ser amado. Enfim, para ter oportunidades como qualquer outro, vivendo ou não com o HIV. Vou fazer a transição para o Dovato quando for possível. Nós esperamos que a ciência avance sempre, com doses mais reduzidas ou com tempo maior de dosagem.”

O mal do estigma

João Geraldo Netto, de 41 anos, criador do canal Super Indetectável no YouTube, também lamenta o preconceito no caminho com a desinformação. “O problema no enfrentamento ao HIV é o estigma. No Brasil, morrem 14 mil por ano de Aids. Como um País com o melhor tratamento do mundo e de graça tem esse número? O que explica é o estigma, discriminação e a baixa percepção de risco. Há quem transe sem camisinha e acha que está tudo bem, que não tem ameaça. Isso não é verdade: todos nós que fazemos sexo estamos em risco”, diz Netto.

Ele recebeu o diagnóstico há 22 anos, e acompanhou cada evolução científica. Por isso, reforça que abordagens revolucionárias são sinônimo de esperança e bem-estar físico e espiritual. “Sempre vejo como positivo. Mas não fico preso na ideia de cura, como muitos. Não será tão simples assim. As pessoas se apegam a isso por medo da discriminação.”

Um exemplo da fala de Netto é a falsa informação que repercutiu de que o cabotegravir seria uma vacina. “É uma injeção. A vacina usa um agente biológico, que entra no seu corpo e faz com que ele produza uma imunidade que te protege. O cabotegravir é um medicamento de absorção lenta, que entra no organismo e protege”, explica.

De acordo com a Anvisa, o cabotegravir é um antirretroviral da classe dos inibidores da enzima integrase, que impede a inserção do DNA viral do HIV no DNA humano — é como se o vírus tivesse a chave, mas o DNA mudasse a todo momento de fechadura.

Nas redes sociais, quem também faz o trabalho de conscientização a respeito do vírus que ataca células específicas do sistema imunológico é o psicólogo Guilherme Lima, 30.

Para ele, o diagnóstico veio em 2017 com a mesma realidade de muitos: o pouco conhecimento e a imprevisibilidade do futuro. “Em geral, a informação ainda está baseada no que foi nos anos 1980 e 1990, quando as pessoas adoeciam e acabavam morrendo em função da doença”, observa.

A situação hoje é diferente, com ele sendo porta-voz de que é possível levar vida normal. Por saber o que alguém em condição soropositiva enfrenta, atualmente ele trabalha com quem vive com HIV e Aids. E concorda com Netto a respeito da cura: “Está longe, mas tudo isso são passos curtos e significativos. Conseguimos perceber que existem caminhos possíveis. O que há em comum com esses três contextos — Dovato, cabotegravir e ‘paciente de Genebra’ — é justamente a ciência. Passamos por um período difícil de negacionismo e fake news, notícias como essa devem ser celebradas. O cenário está mudando, as coisas estão diferentes dos anos 1980. Da mesma forma que a ciência caminha, a mentalidade do ser tem que acompanhar a evolução.”

No Brasil, mais de um milhão de cidadãos vivem com HIV

Segundo o boletim epidemiológico da Secretaria de Vigilância em Saúde e Ambiente do Ministério da Saúde, somente em 2022 houve o registro de mais de 16,7 mil casos da infecção.

Por meio do SUS, o País é referência internacional no tratamento de HIV/Aids, com acesso à testagem e preservativos.

Apesar do bom andamento, é preciso olhar atento ao que se deve também combater: estigma, preconceito e discriminação.