“Precisamos avançar na construção de alianças com setores da sociedade civil para garantir que o SUS continue sendo para todos. Essa luta não é só do movimento aids, mas da população brasileira como um todo”. A fala é da jornalista Alessandra Nilo, co-fundadora da ONG Gestos de Pernambuco. Ela e outros especialistas participaram nesta quinta-feira (19), da live “As infecções por HIV no transplante de órgãos no Rio de Janeiro: escândalo e preconceito”, realizada pela Agência Aids, em parceria com o Portal IG. Ao criticar a falta de controle social nas parcerias publico-privada, a ativista sugeriu que o movimento aids e outras organizações de saúde se unam em campanhas que defendam a saúde pública como um direito universal.

O debate focou no escândalo sem precedentes envolvendo a infecção por HIV em seis pacientes transplantados no Rio de Janeiro, um caso que chocou o Brasil desde que veio à tona na última sexta-feira (11).

Com mais de 30 anos de atuação no combate ao HIV, a jornalista Roseli Tardelli, diretora desta Agência, abriu a live com um tom de profunda indignação. Ela relatou nunca ter imaginado que estaria à frente de uma discussão sobre um erro tão grave, após tantas conquistas no campo da saúde pública e da luta contra a aids no Brasil. “Eu nunca achei que fôssemos fazer uma live para discutir um escândalo, que é o escândalo sem precedentes na história da saúde do Brasil”, afirmou.

Na transmissão, Roseli destacou a importância de manter o tema em pauta e agradeceu o apoio da mídia, que, segundo ela, foi fundamental para que as autoridades começassem a tomar medidas. “As atitudes foram tomadas a partir do momento em que a mídia entrou no caso”, disse.

Além de Alessandra, o debate contou com a participação de especialistas de renome na área do HIV/aids: Veriano Terto, vice-presidente da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA), e o médico epidemiologista Dr. Fábio Mesquita, ex-diretor do Departamento de Aids e Hepatites Virais do Ministério da Saúde.

Privatização descontrolada

Veriano Terto expressou sua indignação com o caso, mas destacou que não se surpreendeu. Segundo o ativista, o episódio é reflexo de uma tendência crescente à privatização descontrolada dos serviços de saúde, o que inclui o setor de sangue e hemoderivados no Brasil.

Ele relembrou o impacto negativo da PEC do Plasma (Proposta de Emenda Constitucional nº 10 de 2022), que busca flexibilizar a Lei do Sangue (Lei Henfil), uma das maiores conquistas do Brasil nas décadas de 1980 e 1990, liderada por ativistas como Betinho. “Desde o ano passado, estamos chamando a atenção para essa tendência de privatização, que ameaça desmontar os sucessos obtidos na regulação do sangue e seus derivados no Brasil”, afirmou Veriano.

Ele criticou a falta de transparência nas parcerias entre o setor público e privado e apontou que o caso do Rio de Janeiro é apenas mais um exemplo das consequências desse desmonte.

Retrocesso e falta de controle social 

Veriano alertou ainda para o risco de o Brasil voltar a enfrentar situações semelhantes devido à ausência de fiscalização e ao crescente esquecimento das conquistas passadas. “A privatização descontrolada que estamos vendo hoje é uma causa de morte e adoecimento. É lamentável, mas é um chamado para voltarmos a incluir a questão do sangue em nossa agenda”, afirmou.

Veriano também mencionou pesquisas da UFRJ, que já haviam denunciado acordos obscuros entre governos e organizações sociais (OS) na gestão de hospitais, apontando superfaturamento e prestação de serviços de baixa qualidade.

Dr. Fábio, que tem uma longa trajetória de atuação no combate ao HIV e na saúde pública, também lamentou o ocorrido ao destacar que o Brasil sempre foi visto com orgulho no cenário internacional pelos seus programas de transplantes e pela qualidade do sangue.

“Essa notícia realmente me chocou, e por vários motivos”, afirmou Fábio. Ele relembrou que o Brasil é o segundo maior país do mundo em número de transplantes e o primeiro a realizar tantos procedimentos com recursos públicos. “O sistema de transplantes do Brasil sempre foi visto como um exemplo de excelência”, disse.

Impacto na credibilidade do sistema de saúde

O se destacava internacionalmente pela alta qualidade dos bancos de sangue, construída ao longo das décadas de 1980 e 1990, especialmente após as campanhas lideradas por ativistas como Betinho e a ABIA. “A partir de 1993, alcançamos o controle perfeito da qualidade do sangue no Brasil, algo que muitos países, como Egito e Mongólia, não conseguiram”, afirmou.

O escândalo envolvendo a infecção dos pacientes transplantados coloca em risco essa reputação. Dr. Fábio disse que o Brasil, que já foi um exemplo mundial na resposta à epidemia de HIV e também na vacinação, sofreu retrocessos após o governo Temer e, especialmente, durante o governo Bolsonaro. “Vimos a vacinação e o controle de doenças infecciosas caírem de forma brutal”, lamentou.

Uma das maiores preocupações do Dr. Fábio foi o fato de que as autoridades de saúde já sabiam do caso há um mês, mas só tomaram providências após a imprensa trazer o caso à tona. “O que me chocou foi saber que as autoridades sabiam disso e só agiram quando a imprensa denunciou”, afirmou.

“Sabemos que quanto mais cedo começa o tratamento para o HIV, melhores são as chances de a pessoa atingir carga viral indetectável e não transmitir o vírus. Essas pessoas deveriam ter sido tratadas imediatamente”, afirmou o médico.

Ele também criticou o fato de uma paciente ter relatado que sua consulta para iniciar o tratamento foi marcada para um mês após o diagnóstico. “Isso é completamente fora do protocolo. A Organização Mundial de Saúde recomenda iniciar o tratamento no mesmo dia em que o diagnóstico é feito”, enfatizou.

Falhas nas parcerias público-privadas

Assim como Veriano, Alessandra Nilo destacou que, embora o caso seja chocante, ele não a surpreendeu, pois já havia alertas sobre falhas nas parcerias público-privadas (PPPs) no Brasil, especialmente no setor de saúde.

“Eu imaginava que algo assim aconteceria em breve. E, na verdade, provavelmente isso já está acontecendo em outros lugares, só que nós não sabemos”, disse Alessandra. Para ela, o grande problema é a falta de um sistema eficaz de controle dessas parcerias, o que não ocorre apenas na saúde, mas em várias áreas essenciais como educação, energia e comunicação.

Alessandra criticou a narrativa predominante que promove a privatização como solução para os problemas de gestão pública. Segundo ela, a ideia de que o setor privado sempre oferece melhores serviços é falsa e tem sido imposta por gestões que buscam diminuir o tamanho do Estado. “Essa falácia de que o que o Estado faz é muito ruim e que o setor privado faz é muito bom tem sido historicamente empurrada goela abaixo”, afirmou.

Ela apontou que a falta de transparência nas PPPs é um dos maiores problemas enfrentados pelo Brasil atualmente, dificultando o controle social e a fiscalização adequada. “O problema de fiscalização das políticas públicas no Brasil é hoje um dos maiores desafios que temos”, disse. Embora o país tenha marcos legislativos avançados, a implementação dessas políticas é falha, gerando situações como a do Rio de Janeiro.

Retrocesso no combate ao estigma e à desinformação

Além das falhas no sistema de saúde, Alessandra destacou como o estigma e a discriminação em torno do HIV continuam arraigados na sociedade, mesmo após anos de trabalho para combater a desinformação. Ela observou que, diante de uma notícia como essa, antigos medos e preconceitos voltam à tona, indicando que o trabalho de conscientização precisa ser reforçado.

“Trabalhamos tanto, mas vemos que o estigma e a discriminação ainda estão profundamente enraizados. Precisamos construir políticas mais densas de informação, comunicação e educação sobre HIV e aids”, disse.

O impacto da infecção por HIV

Questionado sobre o impacto dessa situação na vida das pessoas com HIV, Dr. Fábio Mesquita ressaltou que o episódio reforça a ideia errônea de que a aids foi superada. “O preconceito e o estigma ainda são muito altos, e o acesso ao tratamento é marcado por desigualdades imensas entre pessoas e regiões.”

Para as pessoas sem HIV, a notícia reacende medos antigos e aumenta a desconfiança em relação ao sistema de saúde. “Isso gera insegurança não só para quem está na fila de transplantes, mas para toda a população, pois questiona a qualidade dos procedimentos realizados pelo sistema de saúde”, acrescentou.

Ele finalizou reforçando a necessidade de maior fiscalização sobre as parcerias público-privadas e medidas imediatas para restabelecer a confiança na saúde pública brasileira. “Precisamos voltar a lutar pela saúde pública, pela prevenção e pela ética na gestão do sangue e dos transplantes no Brasil.”

O debate deixou claro que o impacto dessa falha transcende o erro isolado e levanta questões sobre a sustentabilidade e o controle das políticas de saúde no Brasil.

Alessandra Nilo reforçou a crítica à privatização descontrolada da saúde, mencionando que a falta de fiscalização tem permitido que parcerias público-privadas operem de forma opaca, sem prestação de contas. “Saúde tem sido tratada como comércio, e a falta de controle nos coloca em uma situação de vulnerabilidade, onde erros como este se tornam possíveis”, afirmou.

Alessandra também destacou que a quebra dos mecanismos de fiscalização facilita o uso indevido dos recursos públicos, seja por corrupção ou por busca de lucros indevidos em áreas sensíveis, como a saúde. “A corrupção e a falta de controle sobre as parcerias público-privadas têm consequências graves, e vimos isso agora com o caso do Rio de Janeiro”, afirmou.

Ela reforçou a importância de discutir o financiamento público, a transparência e a accountability no Brasil, para evitar que tragédias como essa voltem a ocorrer. “Sem controle social, qualquer sistema de saúde está vulnerável a falhas”, concluiu.

Privatização e os limites legais do SUS

A questão dos limites legais para a privatização do SUS também foi levantada durante a live. Dr. Fábio Mesquita explicou que, embora haja justificativas legais para a contratação de terceiros, como limites de gastos com funcionários públicos, a falta de fiscalização dessas parcerias é inaceitável. “A fiscalização é uma obrigação, e não pode ser negligenciada. Quando isso acontece, vemos os problemas se acumularem, como ocorreu com a infecção dos pacientes transplantados”, disse.

“O que aconteceu é um crime, e devemos chamá-lo assim. Isso não se resume ao HIV; poderia ser qualquer outra doença transmissível por transfusão, e o impacto seria o mesmo”, afirmou Veriano. Ele ressaltou a necessidade de reavivar a luta pela qualidade dos serviços de saúde e pela transparência nas parcerias entre o setor público e privado.

“Estamos vivendo uma época de privatização desenfreada, onde os interesses privados prevalecem sobre os da população. Precisamos nos unir e resistir a esse descalabro”, disse.

A ativista Alessandra Nilo reforçou a crítica ao modelo de privatização dos serviços essenciais de saúde no Brasil, argumentando que essa estratégia não tem gerado o retorno esperado em termos de qualidade de atendimento. “A saúde tem sido tratada como comércio. Se estivesse funcionando, o sistema de saúde no Brasil estaria em outro patamar”, afirmou Alessandra.

O caminho para o futuro: controle social e alianças

Os especialistas concluíram que o momento exige uma mobilização coletiva para exigir maior fiscalização e controle social sobre as parcerias público-privadas na saúde. Alessandra Nilo sugeriu que as organizações da sociedade civil pressionem por uma revisão dessas parcerias e uma maior transparência nas ações governamentais.

“A saúde pública não é apenas uma questão do movimento aids, é uma luta da população brasileira como um todo”, disse Alessandra. Ela também destacou que, embora o debate sobre privatização seja de longo prazo, medidas imediatas precisam ser tomadas para garantir a segurança no sistema de sangue e testagem em todo o país.

Dr. Fábio Mesquita considera que é  preciso “seguir lutando pela qualidade do sangue, pela excelência dos transplantes e pela resposta ao HIV no Brasil”, concluiu.

Ao final da live, Alessandra Nilo destacou a importância de transformar a indignação em ação. “Nós fomos relembrados da importância do controle social e da fiscalização. Agora é o momento de transformar essa tragédia em ações concretas que garantam a segurança e a qualidade dos serviços de saúde no Brasil”, finalizou.

Assista a live na íntegra: 

Talita Martins (talita@agenciaaids.com.br)

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