Relembre a entrevista publicada originalmente no dia 30 de janeiro de 2022. Ela oorreu na manhã dessa terça-feira (19), aos 75 anos. Presidente do Grupo Pela Vidda/SP, Thais deixa um legado que transcende gerações, marcado pela sua luta incansável contra o HIV/aids, pela visibilidade e dignidade das pessoas trans e travestis, e por justiça social.
Quando questionada sobre sua identidade de gênero, Thais Azevedo diz que não é ela quem se identifica, são as pessoas que a identificam. “Eu tenho aspecto de uma senhora. Uma senhora de 73 anos não tem gênero, não tem identidade, não tem sexo, não tem nada. As minhas emoções são, foram, muito femininas, mas isso não me coloca como uma pessoa alienada. Eu entendo perfeitamente o meu estado biológico, o meu estado emocional e o estado em que as pessoas me colocam, o que é muito importante”, argumenta.
Nascida no interior de Minas Gerais, em uma cidadezinha chamada Várzea da Palma, Thais é de uma família grande, de nove irmãos, que sempre a tratou muito bem. Até que foi estudar fora.
“Quando a gente terminava o ensino fundamental, a gente ia para o Rio de Janeiro continuar os estudos, porque minha tia morava lá. Ela era extremamente homofóbica, uma mulher insuportável e imediatamente sacou que eu era gay. Ela me perseguia tanto, ela falava que se fosse pra envergonhar a família, o mundo era grande. Tipo assim, você some, né? Eu estava com 12 ou 13 anos, sempre fui muito mimada pelos meus pais e, de repente, comecei a lidar com uma rejeição muito grande. E eu estava com meus irmãos que sempre me protegeram e começaram a me ver agredida pela minha tia”, conta.
Isso durou algum tempo, até que conheceu um homem, perto da casa da tia, que disse para a menina que ela era uma criança muito bonita e a convidou para dar uma volta. Thais foi e viveu com ele muitos anos, ganhando dele um apartamento no mesmo quarteirão onde a tia morava.
“Depois eu fui para o mundo da moda, fui manequim de prova da Shadow [grife badalada nos anos 70] durante muitos anos. Eu tinha as medidas perfeitas, o estilista fazia as roupas pelo meu corpo. Eu era aquela travesti que vivia clandestinamente, trabalhava no showroom, desfilava as coleções para os clientes, saía às 18h e ia para a loja dele no shopping vender, porque aí eu ganhava comissão das coisas que eu vendia”, explica.
Thais fez começou a hormonização ainda adolescente, por conta própria, e fez isso durante muito tempo, uma vez que o processo não era disponível no SUS nesses tempos. “Naquela época, a gente tomava anticoncepcional, curiosamente na mesma época em que as mulheres começaram a se libertar. As mulheres de antes não tinham nenhuma liberdade, o que respondia pela moral delas era o hímen. Elas não podiam perder a virgindade e a prova da perda da virgindade era a gravidez. A gente tomava anticoncepcional para modificar a nossa forma física, adquirir peito, arredondar a forma dos quadris. O hormônio mexeu muito comigo fisiologicamente, porque eu tinha um aspecto muito vulnerável, delicado. Eu cresci três centímetros, todas as minhas calças ficaram curtas e me deu um pouco de pelos no queixo. Com o tempo, os pelos sumiram, não eram muitos. Tudo isso era feito clandestinamente. As próteses vieram só quando eu já era madura.”
Mais madura, ela se envolveu na área da saúde e na área social, lutando pelos direitos das travestis e pessoas trans. Atualmente, ela está presidenta do grupo Pela Vidda, de São Paulo, organização não governamental que dá assistência e acolhe pessoas vivendo com HIV/aids.
Apesar de ativista, Thais até hoje não mudou legalmente o nome. “Eu sou uma mulher trans, porque que eu tenho que colocar a questão ‘mulher’ na minha história? Nós somos excluídas primordialmente por mulheres e por homens. Então, eu faço exatamente o que eu gosto. Quando eu faço discurso para as trans, eu não me meto na vida delas, elas fazem o que elas acham que tem que fazer. Eu, absolutamente, não vou mudar o meu nome porque isso é política, não tenho que me esconder atrás de história dos outros. Eu sou uma pessoa que transita e sou transgressora das regras. Tem outras pessoas que não se acham assim, elas se acham mulher trans, tem umas que até se operam, não é? É complicado, quando você vai conversar com as pessoas trans, quantas delas sabem se são trans ou se são travestis? O que é ser travesti, o que é ser trans?”
Ela entende que travestir-se quer dizer fantasiar-se. A pessoa pode se travestir de muita coisa: de mulher, de padre, de soldado, bastando usar uma indumentária para isso.
“A gente se travestia para fazer show, por isso era travesti – rapazes que se vestiam de mulheres para fazer um espetáculo, se maquiavam para ficar parecidos com alguma atriz. Eles estavam travestidos de alguém, de algum personagem e, por acaso, esse personagem era feminino. O travesti saía do palco, tirava aquilo tudo e era um homem gay, ou não necessariamente.
Que personagens somos nós, por exemplo? Nós somos pessoas que estão entrando em cena que você sempre vê, isso não quer dizer que a gente nunca existiu. A gente sempre existiu. Só que no terceiro milênio, a tecnologia nos permite ter forma. Então, os hormônios, o silicone, as próteses, essas coisas todas. Isso é tecnologia. Mas o emocional, o que faz a pessoa trans, isso sempre existiu. E essa pessoa trans também sempre foi usada sexualmente. Naquele período em que as mulheres não tinham liberdade, era muito comum esses coronéis do interior do Brasil terem um ‘Zé Mulher’ na cozinha deles. E o que era essa pessoa que fazia a comida, lavava a roupa? Era uma pessoa trans. E era usada sexualmente pelos filhos dos fazendeiros, dos coronéis, porque não tinham acesso a mulheres naquela época para ter relação sexual.”
Thais comenta que a gente vai mudando, que é a evolução natural do ser humano. E que admira Darwin. “Quando ele fala da evolução da espécie, ninguém fala da evolução do corpo humano. Nós somos essa figura, essa personagem do terceiro milênio, o terceiro gênero. Não quero me pontuar como mulher trans nem nada, senão a gente vai ficar eternamente no homem e mulher. O domínio do mundo ainda é masculino. Por essas coisas, eu acho muito perigoso eu mudar meu nome. Tem um abismo de diferença entre o corpo masculino e o corpo feminino. O meu corpo é masculino, eu não posso negar isso. Eu tenho um sentir que não é masculino, talvez seja feminino, ou então é para além do feminino e do masculino. É o terceiro milênio, somos nós. A tecnologia só vai dar o aspecto”, elucida.
Para Thais, cada travesti é uma travesti, é uma pessoa, cheia de conflitos. “Todo mundo tem conflitos, fantasias…Eu estou com 73 anos e ainda hoje eu me pergunto; ‘eu sou o quê, na verdade? É muito complexo pra gente. Só existe homem e mulher. Quando você deixa de se apresentar como homem ou mulher você não tem uma direção. O que é que eu sou? Se a gente for pelo fisiológico, eu sou homem”, conclui.
Nos seus 73 anos, Thais é uma bela senhora muito saudável, super agitada e com uma saúde de ferro. “Sou soropositiva, detectei o HIV em 1986, tenho quase quarenta anos já de HIV. Mas isso não interfere na minha vida, nem a aids conseguiu me derrubar.”
E o que ela faz para se cuidar? “Sou feliz e tomo meus antirretrovirais. Eu nunca fiz plástica para esticar o rosto, só quando era bem novinha dei uma mexida no nariz. Envelhecer como uma pessoa trans pra mim é normal”, conclui.