Há unanimidade entre pedagogos, pediatras e psicólogos de que os ganhos físicos e psíquicos da brincadeira espontânea não têm preço, apesar de a atividade ser gratuita.

Era uma sexta-feira à tarde e eu estava sentada na cadeira de um consultório com vista para o Rio Capibaribe, chovia um pouco, quando ouvi da médica, uma neuropediatra de aproximadamente 35 anos: ‘estamos todos de acordo que há um atraso de desenvolvimento, certo?’ Respondemos que sim, eu e meu companheiro.

Ela seguiu falando sobre a dificuldade de fechar diagnósticos, uma vez que aquela criança que estava bem ali, sendo avaliada, socializava facilmente. Compreendia os contextos do ambiente. Embora não falasse. Na época, em 2021, com dois anos e meio, depois de viver o ápice de uma pandemia, meu filho ainda não pronunciava palavras básicas, como “água”, “papai” e “mamãe”.

Saí dali com um aperto no peito, entramos os três no carro, ele dormiu. “Não vamos nos apressar em procurar diagnósticos”, me disse o pai do meu filho.

Apesar de ter em mãos as requisições de fototerapia e terapia ocupacional, não sei bem o motivo, decidi que a primeira pessoa que procuraria seria uma pedagoga, fundadora do Instituto Casa das Asas – um espaço que difunde e celebra o livre brincar.

“Tenha calma”, ela me disse. E seguiu: “Traga ele para brincar aqui, duas vezes na semana. Os tempos são difíceis para todos, mas principalmente para as crianças”, disse a pedagoga Camila Domingues.

A fala fazia referência ao isolamento social e ao atraso do início da vida escolar imposto à geração que vivia parte de sua primeira infância trancados, em sua maioria, em apartamentos, rodeados de adultos. Longe do brincar e dos estímulos naturais que dele florescem.

A primeira infância é o período que vai desde a concepção do bebê até os 6 anos de idade.
“Ela é fundamental para a construção do sujeito, são os primeiros anos de vida. É nessa fase que se constrói toda questão da identidade da criança. Nos primeiros mil dias de vida é quando o cérebro se multiplica mais, é quando a criança aprende mais do qualquer outro tempo da vida”, explica a psicóloga Stephanie Filgueira, integrante da Rede Nacional da Primeira Infância – uma articulação nacional de organizações da sociedade civil, do governo e do setor privado que atuam, direta ou indiretamente na promoção e na garantia dos direitos das crianças nessa fase da vida.

E é justamente aí que o brincar entra. Foi assim com meu filho. Foi a partir da minha experiência com a maternidade que eu entendi que, além de ser um ato natural da infância e direito – garantido por lei – de todas as crianças, brincar é uma oportunidade incrível delas se reconhecerem como seres saudáveis, sociáveis, atuantes e plenos de emoções. Brincadeira é coisa muito séria.

 

Para a pediatra Luiza Menezes, brincar é o idioma da infância. “É através do brincar que a criança ela se comunica com o meio externo. Uma criança que não brinca, que não é dado a ela o direito de brincar, está silenciada.”
A especialista explica, ainda, que através do livre brincar é possível desenvolver habilidades, além de um treino social importante para a compreensão de sociedade.
“Uma criança quando brinca ela está combatendo o sedentarismo. Ela está desenvolvendo a sua motricidade fina e grossa. A criança quando brinca com seus pares dentro do parque, por exemplo, ela tá tendo lições importantíssimas de gravidade. Ela vê uma folha que cai, ela vê um passarinho que canta, ela vai aprender sobre respeito da fila, sobre ser a sua vez e a vez do amigo. Ela vê o outro conseguindo fazer algo que ainda não faz, ela pensa: ‘então também posso’, ela vai lá e ela testa o seu próprio equilíbrio, suas próprias capacidades motoras e cognitivas e ali todo o potencial dela vai ser desenvolvido. A partir do brincar, ela está se testando inteiramente.”

 

A minha jornada de descobertas no universo do livre brincar é dividida com centenas de milhares de famílias ao redor do mundo. Não há dúvidas. Em Paulista, Região Metropolitana do Recife, no bairro de Nossa Senhora do Ó, vivem Geh Martins e Heverson Martins, mãe e pai de Pedro Gabriel, João Guilherme e Ícaro José.

Juntos, o professor de artes marciais e a diarista encaram com alegria a tarefa de entreter a turma. “Eu não quero eles tanto no tablet e nem na televisão, então eu sou daquelas que quero sempre chamar para brincar na rua, para jogar bola, para chamar os amigos do outro prédio, brincar de desenhar. Ou boto eles na bike e vou pedalar, brincar na praia, na natureza”, contou Geh.

 

O pai ressaltou ainda que a experiência como educador físico prova que na brincadeira se aprende coisas para o resto da vida. “Desde criancinha a gente tá tentando trabalhar a mente das crianças dessa forma”, arrematou.

 

A percepção de Heverson é ratificada pela pedagoga Camila Rodrigues. Foi ela a profissional que me guiou nesse caminho. Para Camila, o grande problema dentro das famílias, hoje em dia, é a pressa e a falta de um olhar atento às crianças.

“O tempo necessário para permitir que o brincar aconteça está se perdendo. Há uma pressa de tudo e o brincar livre vem para dizer: ‘parem, permitam, ele também é direito da criança, ele traz crescimento e aprendizado constante.”

O ‘brincar livre’, expressão muito difundida entre educadores e profissionais ligados à primeira infância, é aquele que não é direcionado pelos adultos, que acontece de maneira espontânea, quando as próprias crianças decidem do que e como irão brincar.
“A brincadeira livre e espontânea sempre aconteceu nos quintais das nossas casas, nas famílias grandes. Só que o mundo e a vida da gente foram tomando esse eixo diferente, dando uma forma mais aprisionada. Hoje, falamos novamente no brincar livre para mostrar o quanto é importante trazer a brincadeira espontânea, permitindo que a criança seja dona de si mesmo.”
“O brincar guarda uma relação com a cultura, tem uma dimensão de pertencimento, ao seu lugar, a sua cultura. Isso se reproduz no brincar, nas brincadeiras tradicionais, de rua, naquelas que a gente repete o que nossos pais e avós fizeram”, complementa a psicóloga Stephanie Filgueira.

 

José Mário é brincante e mestre de cultura popular. Ele entende bem de brincar livre. “É se divertir, é poder fazer aquilo que tá ao seu alcance. É poder se divertir com algo que não precisa ser comprado. Eu brincava com a lama, com pedaço de barro, com tijolo e me divertia o tanto quanto as crianças se divertem com celular. Talvez até um pouco mais.”

Zé, como é conhecido, explica a relação do homem do campo com as brincadeiras: “No campo, só se saía de casa para trabalhar ou para se divertir nas brincadeiras, como o maracatu, o cavalo marinho, o mamulengo, o coco. Tudo isso é brincadeira. Eu comecei nelas com 11 anos e, por incrível que pareça, eu não cansei, não enjoei, eu me sinto ótimo”.
Para a psicóloga Stephanie Filgueira, os reflexos da criança que brinca no adulto são muitos. “A gente pode ver na própria segurança, em algumas situações, e na possibilidade de se impor delas. O adulto que brincou tende a se lançar mais a desafios, a se experimentar, a ter mais segurança e mais confiança para lidar com as adversidades da vida e com a frustração.”

A pediatra Luiza Menezes corrobora a ideia: “A gente sabe que uma infância vivida intensamente, com qualidade, com segurança, com tempo para brincar, com apego seguro, com respeito a esse ser humano, é fator preventivo a doenças da vida adulta que estão enraizados na infância. Então, através do livre brincar, a gente está promovendo a saúde também do adulto.”

 

Enquanto eu escrevia esse texto, meu celular tocou. Era um áudio: “Mamãe, que horas eu vou para a casa de vovó?”. Meu filho se transformou num tagarela que ama longas conversas. Nessa jornada, nós dois, juntos, passamos a entender o dia-a-dia como uma janela de espiar o mundo, de explorar novas possibilidades. Numa panela, enxergamos um brinquedo. Fazemos nossas próprias festas e dançamos na cozinha. Buscamos o ar livre. Parques, praias, rua. Buscamos o outro. E um ao outro. Brincando, tecemos fios invisíveis de conexões entre nós.

Fonte: G1