Estupro: o que é, qual a pena, quando é possível denunciar e outras dúvidas - Universa - UOL Universa

A cada 8 minutos, uma menina ou mulher foi estuprada no primeiro semestre deste ano no Brasil, maior número da série iniciada em 2019 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP). Foram registrados 34 mil estupros e estupros de vulneráveis de meninas e mulheres de janeiro a junho, o que representa aumento de 14,9% em relação ao mesmo período do ano passado.  

Os dados compilados pelo Fórum, divulgados no começo do mês, apontam ainda que os feminicídios e homicídios femininos cresceram 2,6% no período, em comparação ao mesmo período de 2022. Foram 722 mulheres vítimas de feminicídio – quando o crime ocorre por razões de gênero. Mais 1.902 foram assassinadas e tiveram os casos registrados como homicídio. A entidade avalia que os números mostram que o estado brasileiro segue falhando na tarefa de proteger suas meninas e mulheres.

Em 2022, foram 75 mil estupros notificados, 58.820 deles categorizados como estupro de vulnerável – ou seja, quando a vítima não tem o discernimento para a prática do ato ou por algum motivo não possa se defender. Naquele momento, já havia alta nos casos com relação ao ano anterior, a alta chegou a alcançar 8,2%. Isso equivale a uma média de 205 estupros por dia, com taxa de 36,9 casos para cada 100 mil habitantes. Todos os dados são do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

O mais recente anuário do Fórum ainda sistematizou outros tipos de violência de gênero, foram 24.382 casos de violência psicológica contra a mulher registrados no país, mais que dobrando o número de 2022, que era de 10.922 casos. Ainda sobre violência psicológica, o número de denúncias aumentou em 121,8% no intervalo de tempo entre 2021 e 2022; e todos os estados retratados tiveram aumento de denúncias de 2021 e 2022. Com exceção apenas de Roraima, o número de violência psicológica contra a população feminina em todos os estados brasileiros cresceu mais que o dobro em relação ao ano anterior.

Violência nos Estados

Os estados que tiveram os maiores índices foram: Roraima (4.494); Rio Grande do Sul (2.960); Rio de Janeiro (1.992); Santa Catarina (1.982); Pará (1.919); Goiás (1.773); Minas Gerais (1.651) e Paraná (1.550), respectivamente.

No país, o estado com número mais significativo de violência psicológica foi Roraima, com 4.294 casos registrados, e logo em seguida o Rio Grande do Sul, com 2.960 notificações. O estado com menor número de denúncias foi o Paraná, alcançando 1.550 ocorrências.

O mesmo levantamento mostra também dados de violência doméstica. De acordo com o anuário, as maiores elevações nos crimes de violência doméstica ocorreram na região sul do país. Santa Catarina foi o estado com maior acréscimo entre 2021 e 2022; o número quase triplicou, com aumento em mais de 244%.

Com relação aos índices de estupro, São Paulo (SP) lidera as taxas com 27,7%. Na sequência aparece Santa Catarina (SC) com 15,8%; Rio de Janeiro (RJ) com 15,5%; Paraná 15%; e Minas Gerais 13,6%. Os estados permaneceram os mesmos nos anos de 2021 e 2022, embora com [pequenas] variações percentuais.

Importunação sexual

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Tratando-se de importunação sexual, o crime é caracterizado por abordagens sexuais invasivas, gestos obscenos ou toques indesejados em locais públicos, criando um ambiente desconfortável para a vítima. No Brasil, a prática tornou-se crime a partir da Lei de nº 13.718/2018.

O relatório emitido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública destaca os estados brasileiros com maiores acréscimos de 2021 para 2022, são eles: Rio Grande do Norte (RN); Espírito Santo (ES); Acre (AC); e Bahia (BA), com 35%, 51%, 63%, e 67%, respectivamente.

A interseccionalidade de desigualdades sociais consegue deixar a situação ainda pior; isto pois, quanto ao perfil das vítimas, mulheres negras são as principais vítimas de estupro no Brasil. Em 2022, 88,7% eram identificadas como do sexo feminino e 11,3% como do sexo masculino; e enquanto o número de estupros contra pessoas brancas têm queda, mesmo que por vezes tímida, contra pessoas pretas e pardas ele anda no sentido inverso, ou seja, aumenta, com salto de 52,2% para 56,8% de um ano para o outro [de 2021 para 2022].

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Thais Carvalho, pesquisadora do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, explica que o estudo é realizado de forma minuciosa. “A gente trabalha pedindo [aos estados] base de microdados; dessa forma, conseguimos extrair informações segundo critérios de raça/cor, idade, e perfil do agressor”.

Dessa forma então, segundo ela, o grupo de trabalho pode fazer o levantamento estatístico com um compreensão mais aprofundada da questão, possibilitando interpretação de questões sociais em torno das violências, com base em diferentes variáveis demográficas, bem como auxiliar na formulação de políticas públicas quando socializados estes dados para a população.

A pesquisadora compreende e destaca que o maior desafio da pesquisa é lidar com a peculiaridade territorial de cada estado. “Precisamos sempre estar atentos se o que a gente está contabilizando em um estado vai valer para outro […] cada um tem um contexto muito seu!”

Impactos em saúde

Já a psicóloga especializada em crimes de gênero, Lynn Chemas, esclarece o contexto social, os impactos e agravos dos diferentes tipos de violações na saúde mental das vítimas. Segundo Lynn, há uma ‘cultura do estupro’ que refere-se a um conjunto de crenças, atitudes e normas sociais que minimizam ou desculpabilizam a violência sexual, perpetuando um ambiente que propicia a ocorrência desses crimes. Essa cultura emerge quando estereótipos de gênero, objetificação sexual de corpos femininos e mitos sobre a violência sexual são normalizados na sociedade. 

Conforme pontua a especialista, isto cria uma atmosfera de insegurança que muitas vezes culpa a vítima, desacredita seus relatos e impede uma resposta eficaz por parte das instituições. “Sendo mulher, a gente vive desde a infância uma noção de violência sexual que os homens não vivem […] desde sempre a gente vive nesse contexto de preocupação”, afirma.

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“Mulheres vão sempre ter medo que de certa forma possam ser objetos de violência sexual na mão dos homens”, complementa.

A especialista ainda chama atenção para outro fato: o abuso consentido dentro das relações. “As mulheres têm a vida toda marcada pela percepção do que é um abuso sexual […] a gente já parte do princípio na lógica clínica que algo do sexual pode estar indo para o corpo em forma de sintoma. Pode ser qualquer tipo de sintoma, uma cistite recorrente, uma dor nas costas, uma fibromialgia, uma enxaqueca, uma gastrite. Qualquer coisa que esteja relacionada a algo do emocional pode vir desse lugar de uma violência sexual”, explica a psicóloga ao alertar sobre os padrões de violência.

Ela reitera que esta cultura além de naturalizar a ideia de que mulheres são projetadas para servir e satisfazer os homens, sobretudo sexualmente, a mesma parte de uma lógica misógina e patriarcal que também revitimiza e cria um julgamento social que impede muitas mulheres de buscarem ajuda, denunciando que, de fato, foram estupradas.

“Falando de crimes sexuais, há estudos internacionais que vão indicar que anos de isolamento social devido a pandemia de covid-19, este período acabou acarretando uma subnotificação, então há menos notificações de pessoas sendo vítimas de crimes sexuais do que de fato há […] e no Brasil, a gente tá falando de uma violência sexual muito infrafamiliar e a maior parte trata-se de estupro de vulnerável, contra são crianças de 3 a 14 anos.”

As estatísticas com relação aos crimes de gênero com agravante sexual contra menores e outras vítimas vulneráveis, conforme mostra o estudo, evidencia um cenário extremamente emergente no Brasil. Nesse sentido, Lynn chama atenção para o fato de que quando a violação contra o corpo de uma menor acontece, naquele contexto, a mesma, na sua incapacidade de consentimento – dada sua imaturidade emocional, cognitiva e física -, pode perceber os impactos práticos disso somente na fase adulta. De acordo com a especialista, por isso “muitas mulheres que foram vítimas de violência sexual têm dificuldade de fazer sexo ao longo da vida.”

O vaginismo – que é a dificuldade involuntária de relaxar os músculos vaginais durante a relação sexual -, segundo ela, é um exemplo do que pode ser uma consequência tardia de um trauma sexual ocorrido na infância, refletindo o impacto psicológico duradouro que pode se manifestar na fase adulta. O transtorno que pode ser percebido anos depois da violação, conforme descreve Lynn, evidencia a complexidade das repercussões psíquicas.

A profissional destaca ainda que “desafios específicos são difíceis de pontuar em termos de psicologia, porque  ser humano é tão vasto […] há mulheres que passaram por violências sexuais tão fortes e não traz aquilo como uma grande questão na vida, às vezes só aparece em outro momento da vida; por outro lado, já tem quem com ‘pequenos abusos’ – no sentido de ter sido ter sido olhada de uma forma diferente por um irmão, por padrasto, etc -, já tem sua sexualidade marcada de um jeito muito forte […]”.

“Mas eu acho que o desafio maior é a mulher se apropriar do seu corpo e do seu prazer”, afirma.

Em última análise, para pôr fim ao ciclo desta epidemia de violência, ela sugere: “precisamos falar sobre isso, provocar discussões desconfortáveis!”

Consequências legais

Já a advogada Tuane Tarques, também especializada em crimes de gênero, reforça que além das vítimas terem medo de denunciar a violência, muitas vezes são vitimizadas por locais e profissionais que deveriam prestar o tipo de acolhida necessária. “Muitas têm medo de represálias por parte do agressor, de serem julgadas pela sociedade ou de não serem acreditadas”. 

Para além, Tuane contextualiza que o estigma associado ao abuso sexual pode ser cruel e esmagador, gerando consequências diretas na condição de saúde destas mulheres; um deles é o trauma emocional. “O trauma resultante do abuso sexual pode dificultar inclusive da vítima se relacionar afetivamente com outras pessoas”, destaca.

“Algumas sobreviventes não têm recebido apoio de amigos, familiares ou instituições ao denunciar, e essa falta de apoio pode tornar o processo ainda mais solitário e aterrorizante”.

Segundo a especialista o problema ainda não para por aí, a ausência de provas físicas e sólidas do crime, em muitos casos, também é fator preponderante que dificulta o andamento da investigação e alimenta o ciclo da violência.

Entretanto, apesar de todos os desafios, as entrevistadas enfatizam que denunciar é um passo não somente importante, como crucial para pôr fim ao ciclo de violência, seja ela qual for, bem como para garantir a responsabilização judicial do agressor.

Kéren Morais (keren@agenciaaids.com.br)