O direito à saúde e ao bem-estar das pessoas travestis e transexuais faz parte dos principais debates relativos à identidade de gênero e sexualidade de pessoas não cisgêneras. A luta pela garantia deste direito, assegurado em lei, de acordo com Julie Vigano, mulher trans, atriz e fonoaudióloga de formação, apesar de avanços significativos, ainda está longe do esperado.

Alguns dados evidenciam a negligência cultural à saúde destas pessoas, tanto da saúde física como mental. Não é diferente em relação ao HIV/aids, as mesmas se apresentam mais vulneráveis ao vírus, os desafios de prevenção e adesão ao tratamento também são maiores.

População acometida pelo HIV

No Brasil, dois grupos que são desproporcionalmente mais acometidos pela epidemia de HIV/aids são os homens gays e bissexuais e as pessoas trans. O primeiro já tem sido objeto de estudo de pesquisadores do tema há bastante tempo.

Em 2018, por exemplo, uma pesquisa realizada em 12 capitais brasileiras identificou que a média nacional da prevalência de infecção por HIV entre homens gays e bissexuais era de 18,4%, enquanto na população geral estava em torno de 0,4%. Por outro lado, os dados sobre pessoas trans sempre foram mais escassos no Brasil e no mundo, e somente nos últimos anos uma quantidade maior de estudos se dedicou a estudá-las.

Em dezembro de 2021, com a publicação do mais completo estudo sobre HIV na população trans feito até hoje, a dimensão real do peso da epidemia nesse subgrupo ficou evidente. Trata-se de uma metanálise que agrupou 98 estudos publicados na literatura médica sobre HIV em homens e mulheres trans entre os anos de 2000 e 2019. Foram incluídos na análise mais de 48.000 mulheres trans e cerca de 6.400 homens trans de todas as regiões do mundo.

A média mundial encontrada de prevalência de infecção por HIV entre mulheres trans foi de 19,9%, enquanto entre homens trans esse número foi de 2,56%. O trabalho também demonstrou que uma mulher trans que nasce nesse planeta tem 66 vezes mais risco de se infectar com HIV ao longo da sua vida, quando comparada com a população geral. Já um homem trans tem risco 6,8 vezes maior.

Em relação a doenças psíquicas e emocionais, a revista The Lancet revelou que aproximadamente 60% da população transgênero sofre de depressão.

O mais recente dossiê levantado pela ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transsexuais) revelou, na última semana, que pelo 14º ano consecutivo, o Brasil é o país que mais mata esse grupo populacional.

Julie Vigano entende que, em um país como o Brasil, onde a violência de gênero ainda é muito brutal, pessoas trans e travestis não são contempladas por inúmeras oportunidades, como por exemplo, de trabalho, por estarem às margens da sociedade, sendo estes corpos submetidos compulsoriamente a condições de vulnerabilidade e marginalização. “Isso dificulta muito a nossa sobrevivência”, disse.

Respeito ao nome

Nos serviços de promoção e cuidado à saúde, ela afirma que o principal desafio que esta população precisa encarar é o desrespeito para com os seus nomes/pronomes.

“Ao chegar nestes centros de saúde, postos, unidades básicas e até hospitais, quando chega a pessoa trans que não tem o seu nome retificado ou até pode ter seus documentos atualizados, as equipes não estão preparadas para lidar com isso, e não respeitam o nome pela qual esta pessoa deseja ser chamada”.

Ela completou falando ainda que as diferentes demandas desta população são desconhecidas pela maior parcela das pessoas e profissionais.

“Existem homens trans masculinos, pessoas não binárias, que se identificam com o gênero masculino, engravidam e os profissionais não sabem lidar com isso’’.

Apesar de achar que o caminho a trilhar ainda é longo, Julie considera que avanços significativos já foram conquistados e enxerga o futuro com otimismo. “Muitas equipes de saúde vêm melhorando, estudando, fazendo rodas de conversas e chamando pessoas para colaborar nesse tema, mas as pessoas ainda precisam se interessar mais por isso.”

Para além, ela também comentou sobre protagonismo e representativa trans na área da saúde. “É raro a gente ver pessoas trans, travestis e não binárias protagonizando na saúde, mas já vejo pessoas se formando, se desenvolvendo e ocupando lugares.”

A fala

Julie, que também é atriz, inicialmente optou pela fonoaudiologia para trabalhar com a voz de outros artistas, docentes e profissionais da comunicação. Segundo ela, essa escolha até então não tinha influência da sua vivência pessoal enquanto pessoa trans, pois fez a transição em 2019, já no meio da faculdade.

“Eu estava no quarto semestre da faculdade, tinha 27 anos, então muitas questões da minha vida eu já tinha vivido, já estava muito mal com a identidade de gênero que eu externalizava, que era uma identidade que eu não me identificava. Procurei o psicólogo da Universidade Federal de Santa Catarina, que acolhe pessoas em situação de vulnerabilidade, e de lá me aconselhou um ambulatório trans do SUS”. Em três meses ela iniciou o seu processo de hormonização.

Ela destaca a importância do trabalho do profissional fonoaudiólogo para conquista de qualidade de vida em saúde e bem-estar, já citados. “É um trabalho muito complexo, muito especial e sensível, pois estamos trabalhando uma questão muito delicada em um país extremamente violento como é o Brasil, e muitas vezes quando essas pessoas se expressam através da voz, elas sofrem transfobia. É um trabalho muito recompensador, a gente tem uma troca com as pessoas, lugar de escuta e acabamos fazemos parte da vida destas pessoas.”

‘‘Quando há pessoas travestis como eu, traz uma representatividade para essa área que ainda tem um embasamento muito binário e é tomada por rótulos’’, complementou.

Segundo a especialista, a fonoterapia desenvolve o paciente, gerando saúde, saúde mental, melhora na qualidade de vida, e possibilidade de expressão autêntica da identidade através da voz.

 Kéren Morais (keren@agenciaaids.com.br)

Dica de entrevista

Julie Vigano

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