Na última semana, uma longa reportagem da Folha trouxe à discussão a obrigatoriedade do uso de preservativos de barreira pela indústria pornográfica brasileira. A camisinha masculina é o mais conhecido e o mais popular deles. Três atrizes receberam diagnóstico para a infecção pelo HIV e a suspeita recaiu sobre as cenas sem o uso do preservativo.

Embora a matéria traga um assunto importante, a abordagem chega a lembrar debates travados nos idos anos 1990.

É inegável a enormidade do alcance da indústria pornográfica. Receitas e lucros são gigantes. Embora controlada, em parte expressiva, por grandes produtoras, está também pulverizada em pequenas empresas e em produções pessoais, com conteúdo divulgado de forma amadora via internet. A penetração, sem trocadilhos, é extraordinária.

Estima-se que cerca de um terço do tráfego de dados na internet seja impulsionado por conteúdo erótico ou pornográfico. Sexo é um dos assuntos prediletos no mundo e a transmissão do HIV é uma das preocupações que o tema sempre traz.

Nos últimos anos, felizmente, a prevenção do HIV ganhou outros contornos e deixou de centrar somente no uso da camisinha. Conceitos adotados com formas diversas de proteção compõem um arsenal mais eficiente do que medidas isoladas. Um paralelo é a segurança automobilística. Apesar da importância do uso do cinto de segurança, a indústria não para de investir em veículos que absorvem o choque, air bags, freios antitravamento e várias outras melhorias que diminuem ferimentos e mortes em acidentes.

Na transmissão do HIV ocorre algo parecido. O conceito de prevenção combinada ganhou força com a adição de novas armas: testagem frequente, para diagnóstico precoce de possível infecção; uso da profilaxia antes ou após o ato sexual de risco (PrEP e PEP); a supressão do vírus com o coquetel de antivirais, em pessoas que vivem com HIV, para impedir a transmissão ao parceiro sexual (TASP); a adoção de medidas para diagnosticar e tratar outras infecções sexualmente transmissíveis, que facilitam a transmissão do HIV.

Então, por que as atrizes, e também atores, se infectaram? Faltou uma avaliação mais ampla de prevenção aos participantes das filmagens? Poderiam, ainda, ter adquirido o HIV em situações que não estavam ligadas à atuação profissional?

As várias estratégias de prevenção, muitas listadas acima, deveriam e devem ser abordadas com o devido equilíbrio, consideradas as vulnerabilidades.

Fazer acreditar que apenas a falta do uso de camisinha nas cenas foi responsável pela transmissão desconsidera os conceitos atuais de prevenção combinada.

Nem todos conseguirão adaptar-se ao uso de camisinha em todas as relações, ou ao uso continuado de remédios. Embora um método possa ser somado aos outros, a flexibilidade permite que cada um encontre a forma mais conveniente para se prevenir de forma eficaz.

Voltando às cenas de sexo dos filmes pornográficos, se a prevenção combinada tivesse sido aplicada, o uso da camisinha poderia mesmo ser opcional. Assim tem ocorrido na indústria pornográfica americana, que chegou a interromper as filmagens em 2011, depois de identificar um surto de transmissão do HIV. É importante salientar que isso se deu antes da implementação da PrEP e ao florescer do conceito de TASP.

Promover a prevenção combinada para o HIV é a forma mais efetiva de enfrentar a pandemia de HIV e Aids. Olhar para a prática do sexo sem preconceito, e com pragmatismo considerando o que há disponível, é a melhor opção.

* Dr. Esper Kallás é médico infectologista, é professor titular do departamento de moléstias infecciosas e parasitárias da Faculdade de Medicina da USP e pesquisador na mesma universidade.