Imagem do acervo pessoal de Anthony Passeron

Que os leitores me perdoem o uso de um clichê internético, mas faz sentido neste caso: entre os livros lançados neste ano que não prometiam nada e entregaram tudo, “Os Meninos Adormecidos”, do francês Anthony Passeron, certamente está no topo da lista.

Entre as enormes virtudes desse pequeno “romance de não ficção” estão o texto preciso, econômico, duro e frequentemente emocionante; e a capacidade de enxergar com clareza as duas faces da moeda da tragédia da aids quando a doença surgiu, no começo dos anos 1980: a pessoal e a científica.

Explico. O ponto de partida do livro é a história familiar de Passeron, nascido em 1983 no interior profundo do sul da França, numa família de açougueiros parcialmente formada por imigrantes italianos, gente simples, conservadora, fechada, que só vive para o trabalho.

Désiré, o jovem tio do escritor, sai desse roteiro ao levar uma vida boêmia que o acaba expondo ao uso de drogas injetáveis e à contaminação com o estranho “câncer” que mais tarde se revela a Aids. E a doença acaba sendo transmitida desde o nascimento para a filha do tio e prima de Passeron (a mãe da menina também contraiu o vírus da doença).

A reportagem que linkei acima aborda muito bem esses aspectos. Mas creio que vale a pena ressaltar a habilidade com que Passeron mapeia os principais passos do trabalho de detetive científico que foi necessário para entender que diabos era a Aids e o HIV e o que era possível fazer para enfrentar o problema, em especial no caso dos hospitais e instituições de pesquisa franceses.

Essa jornada científica, porém, foi dificultada não apenas pelo caráter insidioso e complexo do vírus, mas também pelo mesmo estigma social que afetava os pacientes. Enfermeiras e médicos muitas vezes tinham o mesmo medo e asco em relação à doença que afetava a população comum, e instituições relutavam em destinar recursos a uma moléstia que supostamente só afetava homossexuais e drogados.

Por sorte, avançamos muito desde então, embora o preço do estigma tenha sido altíssimo.

* Reinaldo José Lopes é repórter de ciência e colunista da Folha. Autor de “Homo Ferox” e “Darwin sem Frescura”, entre outros livros.