Duas mulheres estão agachadas em um espaço externo, uma delas com uma blusa amarela e calças listradas, e a outra vestindo uma blusa colorida e shorts. Elas estão manipulando plantas em uma bacia. Ao fundo, há uma parede de madeira com desenhos pendurados, representando rostos. O ambiente é natural, com vegetação ao redor.

Quando se fala em autocuidado, é comum associá-lo a skincare, cuidados com o cabelo e ioga. No entanto, mais do que cremes caros e atividades físicas, o autocuidado representa um momento voltado para si, que surge de dentro —e essa prática é desafiadora para a mulher negra.

Em um momento em que se exaltam sais de banho e cristais, torna-se difícil entender o autocuidado como uma ação que transcende as tendências de mercado. Esse processo começa pelo autoconhecimento e pela imposição de limites, tanto pessoais quanto na relação com os outros. Essa visão é defendida por especialistas como a psiquiatra e colunista do The New York Times, Pooja Lakshmin, que atende mulheres afetadas por burnout e perfeccionismo.

No Brasil, a perspectiva vem à tona em encontros da ONG Centro de Integração na Serra da Misericórdia, no Rio de Janeiro. Foi quando Ana Santos, de 42 anos, coordenadora do grupo, começou a compreender o assunto, durante as reuniões semanais com mulheres, focadas em saúde e autocuidado.

“Eu não me via nesse lugar de cuidado. Estava sempre preparando as estruturas para que os encontros acontecessem”, diz Ana, que também é ativista e mestre em cozinha agroecológica.

Moradora do Complexo da Penha, ela é dona de casa, cuida de sua família e também de outras 40 crianças atendidas pela ONG. “O tempo da mulher preta é outro. É o tempo da sobrevivência, da correria. Um tempo de gerenciar não só a nossa vida, mas também a vida coletiva, porque dentro da favela a gente vive muito coletivamente”, afirma. “Essa coletividade nos distancia do nosso eu e, às vezes, nos faz parecer egoístas.”

A Roda de Mulheres teve início em 2015, em parceria com a clínica da família local, contando com médicos e terapeutas ocupacionais. Desde 2019, as atividades são realizadas em colaboração com o Instituto Nutes de Educação em Ciência e Saúde (Nutes), da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

No começo, eram introduzidas práticas voltadas à alimentação, como receitas de pão branco integral e chás preparados com ervas. “Uma mulher não sai de casa só para algo voltado para ela. Mas, se é comida, ela pensa: ‘Vou aprender uma receita para meu marido’ ou ‘porque minha filha está precisando’”, diz Ana.

De acordo com a professora e pesquisadora da UFRJ Ana Lúcia Nunes de Sousa, as participantes começaram a perceber esses encontros como espaços para cuidarem de si. Com o tempo, as atividades foram além da culinária, incorporando dança, oficinas de massagem e maquiagem. “Organizar a roda também nos colocou no lugar de cuidado, de sermos cuidadas”, afirma Sousa.

“Se antes algumas vinham para receber cuidado, hoje elas também contribuem para o cuidado coletivo”, acrescenta. Na roda, ela trabalha o conceito político de autocuidado, preferindo o termo “cuidado radical.” É algo antes já abordado por outras pensadoras como bell hooks e Audre Lorde, que escreveu em “Uma explosão de luz”, obra de 1988: “Cuidar de mim mesmo não é autoindulgência, é autopreservação, e isso é um ato de guerra política”.

O autocuidado também se manifesta por meio de uma rede de apoio, como explica a psicóloga Shenia Karlsson. Serem tidas como sujeitos que servem e cuidam dos outros representa um desafio para que mulheres negras priorizem o autocuidado, que, na visão da psicóloga, exige considerar seus próprios desejos e necessidades. “Autocuidado é o investimento em si”, enfatiza.

A influenciadora Lívia Teodoro, 33 anos, conhecida nas redes como Patroa Mesmo, diz que, ao seu ver, o autocuidado é “poder praticar coisas que historicamente me foram negadas.” Entre os exemplos, ela cita ter tempo para descansar e realizar seu trabalho sem exaustão.

Também considera cozinhar a comida que gosta, no seu tempo e com seus recursos, como uma forma de autocuidado. Controle financeiro, aliás, é um aspecto central em sua jornada, assim como priorizar a saúde mental.

Shenia ressalta a importância ainda de mulheres negras buscarem ajuda psicológica. Durante suas consultas, percebe que muitas pacientes estão física e emocionalmente exaustas por tentarem “dar conta de tudo.” Ela costuma questioná-las: quais os ganhos de ser uma super-mulher? “Descobrimos que não há vantagem nenhuma. Só prejuízos”, conclui.

Na roda de mulheres, Ana encontrou um espaço para abandonar essa faceta, o que foi fundamental, ela diz. “Era o único momento em que eu podia ser uma mulher mais fraca. Ali, eu não precisava ser forte o tempo todo, podia ser uma mulher sem véu, com minhas fragilidades.”

Já para a comunicadora Bárbara Brito, 30 anos, o autocuidado significa respeitar seus próprios limites. “Ao fazer isso, eu reconheço meu valor, que vai além das expectativas dos outros, seja pai, marido ou filho.”

Com o apoio da terapia, Bárbara compreendeu que não pode carregar o mundo nas costas e tenta transmitir essa lição para gerações anteriores, como sua mãe e tias.

No entanto, o investimento em si ainda é desafiador para muitas. Ana destaca os obstáculos em sua busca pelo autocuidado, como a alimentação baseada em ultraprocessados, a necessidade de geração de renda e a violência no território.

Para a pesquisadora Sousa, é fundamental pensar em soluções vindas do poder público. “Estamos começando a discutir no Brasil políticas públicas para as mulheres cuidadoras”, afirma.

Fonte: Folha de S. Paulo