Instituída pelo Ministério da Saúde em 13 de maio de 2009, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) é considerada um dos documentos mais importantes em defesa da dignidade e da qualidade de vida das pessoas negras. Fruto de uma longa trajetória de luta dos movimentos sociais, o texto reconhece o racismo como um determinante social da saúde e estabelece diretrizes para o enfrentamento às desigualdades étnico-raciais. 15 anos depois, porém, a implementação da política nos estados e municípios ainda enfrenta desafios.
A PNSIPN enfatiza a necessidade de combater a discriminação no atendimento a pessoas negras em serviços de saúde, incentiva a produção de conhecimento científico sobre a saúde da população negra e estabelece que o tema seja incluído na formação dos profissionais da saúde. O texto destaca, ainda, a importância da produção de indicadores sobre o tema. A determinação culminou na implementação da autodeclaração sobre raça e cor em formulários do Sistema Único de Saúde (SUS), em 2017. O documento também determina que ações de promoção da saúde da população negra sejam incluídas nos Planos Plurianuais (PPA) federais, estaduais e municipais, visando garantir os recursos necessários à implementação da política nas três esferas.
O texto da PNSIPN foi aprovado pelo Conselho Nacional de Saúde em 2006 e publicado como portaria três anos depois. A discussão sobre a necessidade de atenção às dificuldades de acesso à saúde enfrentadas pela população negra, no entanto, já era pauta dos movimentos sociais havia décadas. “Esta é uma política histórica porque é fruto do movimento social. Ao propor essa política, o movimento traz o diferencial de que não dá para promover saúde sem olhar para os aspectos de determinação social. Para você promover saúde para a população negra, é necessário ter estratégias de enfrentamento ao racismo, porque ele produz barreiras de acesso que dificultam o cuidado”, afirma a pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp) Marly Cruz, que coordena o eixo de monitoramento e avaliação da PNSIPN da Assessoria de Equidade Racial do Ministério da Saúde.
Dados da última Pesquisa Nacional de Saúde, produzida pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2019, revelam a dimensão das consequências dessas barreiras. Enquanto 71% das pessoas brancas com mais de 18 anos de idade consideravam sua saúde boa ou muito boa, o índice caía para 62,9% das pessoas pretas e 62,1% das pessoas pardas. Negros também eram os que mais adoeciam por conta do trabalho: 14,2% dos pretos e 13,6% dos pardos haviam deixado de realizar atividades habituais por motivos de saúde relacionados a trabalho nas duas semanas anteriores à pesquisa. Na população branca, o índice era de 11,1%.
A saúde bucal é outro sintoma da desigualdade étnico-racial: enquanto 55% dos brancos haviam ido ao dentista nos 12 meses anteriores à pesquisa, apenas 45,3% dos pardos e 43,8% dos pretos o haviam feito. Os dados da pesquisa também são alarmantes em relação à saúde da mulher. 28,2% das mulheres pardas de 50 a 69 anos nunca haviam feito uma mamografia. Entre as mulheres pretas, o índice era de 26,6%; entre as brancas, de 20,5%.
Apesar de grande parte dos indicadores sobre a saúde da população negra serem considerados críticos, apenas um em cada três municípios brasileiros informava ter incluído ações da PNSIPN no Plano Municipal de Saúde, segundo dados da Pesquisa de Informações Básicas Municipais (Munic) do IBGE de 2021. Para produzir um diagnóstico atualizado sobre a implementação da política no país, o Ministério da Saúde e a Fiocruz, em parceria com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), conduziram neste ano um inquérito on-line, direcionado a todas as secretarias estaduais e municipais de saúde do país, que tiveram cerca de dois meses para responder às 47 questões. Todos os estados, mais o Distrito Federal, e 2.587 municípios haviam participado até o encerramento do primeiro ciclo do levantamento, em outubro.
Os dados estão sendo analisados e devem ser divulgados no início do ano que vem. Com base nas informações disponíveis, Marly enfatiza que ainda há um longo caminho a percorrer. “Consideramos que a política ainda não está devidamente implementada porque ela ainda não acontece em todo o território nacional. É baixo o número de estados e municípios que informam ter ações de saúde da população negra em seus planejamentos. Não tem como garantir recursos se você não faz um planejamento. A política traz as diretrizes mais gerais, mas cabe aos estados e municípios planejar e executar as ações”, explica.
Até o momento, a PNSIPN já teve três planos operativos formulados pela Comissão Intergestores Tripartite (CIT), composta por representantes do Ministério da Saúde, do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) e do Conselho Nacional de Secretários Municipais de Saúde (Conasems). Os documentos estabeleciam eixos estratégicos para a aplicação da política nos níveis federal, estadual e municipal. O primeiro vigorou de 2018 a 2012. O segundo, de 2013 a 2015. O terceiro, de 2017 a 2019.
Para a pesquisadora, a demora na implementação integral da política em todo o país se deve a vários fatores. “Primeiro, a saúde da população negra ainda não é uma prioridade, apesar de indicadores tão críticos. Vemos isso como uma expressão do racismo estrutural e institucional”, reitera Marly. “Existe também um desconhecimento sobre o que é necessário fazer para implementar a política. O gestor está acostumado, muitas vezes, a lidar só com enfrentamento de doenças. E essa política não fala só disso: ela aponta que precisamos desenvolver estratégias antirracistas.”
A formação dos profissionais de saúde é outro desafio apontado pela pesquisadora. “Ainda vemos muitos profissionais de saúde que dizem que não existe racismo e que todo o mundo precisa ser tratado de forma igual. Se, de fato, todos fôssemos tratados igualmente, não teríamos uma disparidade tão grande”, destaca Marly.
Os resultados do primeiro ciclo do inquérito serão disponibilizados no Observatório para a Saúde da População Negra, que ficará hospedado na Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz). O observatório abrigará, ainda, um painel de indicadores sobre a saúde da população negra — essenciais para o monitoramento da implementação da política, na visão de Marly. “Temos buscado produzir informações que ajudem a tomada de decisão não só dos gestores e dos profissionais de saúde, mas também dos movimentos sociais, para que possam exercer seu papel de controle social. Há uma série de agravos que nos permitem ver que a população negra é muito mais massacrada. Quando temos um painel como esse, temos condição de monitorar isso”, afirma.
Além da análise dos resultados do inquérito, a equipe trabalha na criação de um selo para municípios que se destacarem na implementação da política. Após o encerramento do primeiro ciclo, o questionário foi reaberto para respostas. “Continuamos incentivando os municípios a participarem. Isso é importante para sabermos quem já tem ações de promoção da saúde da população negra e precisa fortalecê-las, e quem não tem e precisa implementá-las”, ressalta Marly.
Fonte: Fiocruz