Cura do HIV? O que se sabe sobre tratamento brasileiro

No final de fevereiro, pesquisadores da Alemanha anunciaram o caso de um paciente que está há cinco anos sem o uso de medicamentos para o HIV e sem sinal de retorno do vírus, um quadro de remissão em que o indivíduo foi considerado curado da infecção. Não é a primeira vez que o feito é atingido, outros quatro relatos semelhantes foram anunciados desde 2009, mostrando que a ciência consegue de fato eliminar o patógeno de um ser humano. Em homenagem ao mês da mulher, a Agência Aids conversou com mulheres especialistas que estão à frente da luta contra aids no Brasil. Elas comemoram o novo caso de cura, mas disseram que é preciso cautela, porque traz esperança, mas não é uma estratégia de larga escala para todos os infectados.

Os cinco casos de sucesso até agora compartilham algo em comum: foram beneficiados de um procedimento destinado a outra doença, um câncer, porém pensado também para ajudar no combate ao HIV. Todos precisaram de um transplante de medula óssea e, ao selecionar o doador, os cientistas buscaram alguém com uma mutação genética que levava a não expressão de um receptor chamado CCR5.

Esse receptor é uma proteína que fica na superfície das células do sistema imunológico chamadas linfócitos T CD4, que são os principais alvos do HIV. Ele atua como uma espécie de fechadura por onde o vírus entra na célula. Porém, com a mutação e a ausência do receptor, a célula se torna resistente à infecção, interrompendo a replicação do vírus no organismo e eventualmente o eliminando.

A infectologista e pesquisadora Beatriz Grinsztejn, chefe do laboratório de Pesquisa Clínica em DST e Aids do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (INI/Fiocruz) e presidente da International Aids Society (IAS) explicou, em entrevista à Agência Aids, o processo de cura deste paciente. “O paciente tinha um quadro de doença maligna hematológica e para tratar foi preciso fazer um transplante de células tronco hematopoiéticas. Assim como nos outros casos, na seleção do doador de medula óssea os médicos buscaram pessoas com mutação genética com a deleção delta 32. O que faz essa deleção? Ela leva a não expressão do receptor CCR5, fundamental para a entrada do HIV nas células CD4, de defesa do organismo. Na presença dessa mutação, foi interrompido o mecanismo de replicação do HIV, que eventualmente pode chegar à eliminação do vírus, como aconteceu nesse caso. Então, esses indivíduos permanecem em tratamento com os medicamentos antirretrovirais. Depois do transplante, em algum momento o tratamento foi interrompido, chamamos de interrupção estruturada do tratamento. Ali os médicos avaliam se o HIV voltaria ou não a se reproduzir nessas pessoas. E não voltou.”

Segundo dra. Beatriz, “é importante destacar que essa situação não é facilmente replicável. “Esses pacientes tinham em comum uma doença de base maligna hematológica que requeria um transplante. Um outro ponto importante é saber que apesar de o tratamento antirretroviral ser altamente eficaz, o vírus persiste no organismo, fica albergado nos linfócitos CD4 e em outras células sobre uma forma latente. Como aconteceu neste caso, esse tipo de transplante impediu que os linfócitos dos reservatórios virais latentes pudessem parar de se replicar. É muito interessante porque nos traz insights na busca de uma cura para o HIV.”

Ela continua: “Embora tenhamos uma terapia antirretroviral de alta qualidade no Brasil, a mesma utilizada na maior parte dos países do mundo, ainda temos no país um problema de apresentação tardia para o tratamento, muitas pessoas chegam para se tratar do HIV já no estágio avançado.”

Na avaliação da dra. Rosana Del Bianco, infectologista e diretora da Internação do Centro de Referência e Treinamento em DST/Aids de São Paulo, esses cinco casos de cura do HIV após transplante de medula óssea, mostra um caminho para melhores estudos científicos para o benefício dos pacientes que vivem com HIV e esperam pela cura. “Infelizmente, os cinco casos tinham doenças cancerígenas associadas como leucemia, linfoma de Hodgkin e outros. Necessitaram de doador de medula óssea que tinham o gene CCR5 que impede a entrada do HIV nas células do receptor da medula óssea. Porém, esses doadores são apenas 1% da população que apresentam essa mutação genética protetora a entrada do HIV, tornando cada vez mais difícil este tipo de tratamento.  O transplante de medula óssea nada mais faz do que substituir todas as células do sistema imune do paciente com HIV pelas células do doador. A nível de saúde pública, isso ainda é um sonho. Por isso, a expectativa é que os cientistas elaborem planos de tratamento que sejam mais viáveis e com acesso mais rápido a todos. Devemos manter a esperança da cura, mantendo tratamento adequado para o HIV com adesão as medicações antirretrovirais e torcendo que a cura venha rápido e para todos que necessitem.”

Para a psicóloga Maria Cristina Abbate, coordenadora municipal de IST/Aids de São Paulo, “sempre que ouvimos sobre alguém que se curou, é uma notícia animadora. Embora trate-se de uma intervenção complexa, envolvendo transplante e, não viável em escala, penso que abre caminhos para novos estudos e outras descobertas. Além de despontar como uma perspectiva otimista às pessoas vivendo com HIV/aids. De toda forma, sempre importante reforçar que a terapia antirretroviral administrada com boa adesão leva as pessoas à condições clínicas muito satisfatórias, além de romper cadeias de transmissão do vírus.”

A infectologista Rosa Alencar, coordenadora-adjunta do Programa Estadual de IST/Aids de São Paulo, comemorou a notícias, mas pediu cautela. “A divulgação de um novo caso de cura sempre traz uma nova esperança de que possamos ter disponível a cura do HIV. Claro que é muito importante falar que essa cura também foi feita com procedimento de alta complexidade, que é o transplante de medula. Não é um tratamento que hoje possa ser indicado para muitas pessoas. Nesse sentido, essa cura traz elementos que devam ser melhor investigados nos desenvolvimentos de novas pesquisas com estratégias de cura. O transplante de medula óssea é um procedimento muito complexo, com muitos riscos envolvidos, com uma letalidade relativamente alta, que está indicado para uma doença específica. É importante que continuem o fomento e o financiamento das novas pesquisas para que a gente possa buscar novas estratégias e que essa cura sirva como mais um estímulo, que agregue conhecimento para que a gente possa em algum momento ter isso disponível para todas as pessoas. Por hora, é muito importante que as pessoas continuem seus tratamentos antirretrovirais e fazendo seus testes para HIV. Esse tratamento deve ser mantido por toda a vida até que tenhamos uma novidade que de fato possa ser oferecido para a grande maioria das pessoas.”

A principal dificuldade em encontrar uma terapia que elimine a infecção pelo HIV por completo é devido a algo chamado de persistência viral, que impede os medicamentos atuais de destruírem todas as partes do vírus que circulam pelo organismo.

Ainda que uma cura universal e acessível esteja um pouco distante, o cenário hoje para as pessoas que vivem com HIV é completamente diferente daquele dos anos 80 e 90, quando o vírus foi inicialmente detectado em humanos e seu diagnóstico era quase uma sentença de morte.

 

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Redação da Agência de Notícias da Aids

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