Por que as mulheres cisgêneras heterossexuais acreditam que não são vulneráveis quando falamos de HIV? Este questionamento foi o fio condutor da live realizada nesta semana pela LESex (Liga Acadêmica de Educação Sexual), na UERJ, com objetivo de ampliar a discussão acerca dos impactos e agravos da epidemia de aids na população feminina brasileira.

A conversa foi mediada pela bióloga e educadora sexual Beatriz Melo, e contou com a participação do médico infectologista Maiky Prata; da médica de família e comunidade, Dra. Layze Castberg; e com Sabrina Luz, mulher trans vivendo com HIV e ativista cristã nas causas sobre HIV e transexualidade.

No debate foi amplamente discutido que o machismo e as desigualdades de gênero desempenham influência direta na percepção das mulheres cis heterossexuais em relação à vulnerabilidade de infecção ao HIV. Segundo os participantes, isto ocorre, principalmente, porque o machismo perpetua desigualdades e pressupõe relações de poder e dominação que colocam as mulheres em posições submissas em relacionamentos, sobretudo heteronormativos. Como resultado, elas podem ter, por exemplo, menos controle sobre decisões sexuais, incluindo a negociação do uso de preservativos, o que as torna mais vulneráveis à exposição e infecção pelo vírus da aids.

Pressões sociais relacionadas às expectativas tradicionais de gênero também desempenham seu papel. As mulheres muitas vezes são socialmente pressionadas a satisfazer as necessidades sexuais de seus parceiros e podem ter menos voz na negociação do sexo seguro. Essa pressão pode dificultar a expressão de preocupações com a prevenção do HIV.

Saúde sexual

De acordo com o infectologista Maiky Prata, “o estigma associado à busca de informações sobre saúde sexual, devido ao machismo, também pode dificultar o acesso das mulheres à educação sexual e serviços de prevenção e tratamento. Tudo isso cria um ambiente de insegurança onde essas mulheres podem se sentir socialmente pressionadas a não se envolverem em negociações de sexo seguro, tornando-as mais vulneráveis ao HIV/aids.” 

Segundo o médico, para abordar essa questão, é essencial desafiar as normas de gênero, promover ações em pé de igualdade e garantir que as mulheres tenham autonomia em suas vidas sexuais.

No encontro virtual, Maiky ainda pontuou que o impacto do HIV nas vidas das mulheres está atrelado a falta de diálogo aberto sobre sexo, bem como falta de informação coerente. Nesse sentido, enfatizou a importância de desmistificar a pauta da aids.

“Este assunto é importante de ser tratado como algo simples no sentido de que está próximo da nossa convivência e realidade”, falou, reforçando que o estigma em torno do HIV ainda é uma barreira que impede o acesso à informação e a adesão ao tratamento equânime.

“Primeiro que nós estamos lidando com uma epidemia que impacta a humanidade já há mais de 40 anos; e o medo da morte é uma questão que atravessa profundamente. Está é uma epidemia, sobretudo sexual, então 90% das pessoas que se infectaram foi através do sexo, e sexo na nossa sociedade é tabu!”, afirmou.

“Segundo que essa epidemia atravessou o medo da morte quando a gente não tinha sequer tratamento; e por conta deste tabu, vários tabus outros foram sendo utilizados desde então. Lá no início, era tudo muito desconhecido, as pessoas tinham ‘uma cara’ que todo mundo atribuía a quem vivia com HIV e estava, na verdade, morrendo por aids. Daí a gente já determinou a divisão [social]”, acrescentou.

Novas tecnologias

A mediadora Beatriz Melo, aproveitou o gancho e discorreu acerca da necessidade de se usar terminologias corretas e atuais ao falar sobre HIV. 

“Temos ainda muitos estigmas e fazemos muitas confusões de vocabulário [quando se trata de HIV/aids]”, disse. Beatriz também ressaltou que as pessoas frequentemente confundem o HIV com a aids, resultando em linguagem inadequada e ofensiva.

Feminização da epidemia

Dra. Layze acrescentou outra camada à discussão ao falar sobre a feminização da epidemia de HIV. “A epidemia de HIV/aids entre mulheres é uma questão de gênero muito forte. A maioria das mulheres cis e heterossexuais acreditam que estão imunes ao vírus.”

Sabrina Luz complementou dizendo que o diagnóstico positivo gera muito medo, mas destacou que hoje o HIV não é mais uma sentença de morte, não define o destino de ninguém e que viver com qualidade de vida é uma realidade alcançável. “Eu sempre falo para as pessoas que me procuram que o baque do diagnóstico vai acontecer, mas vai passar, e recomendo que procurem conhecer histórias reais de pessoas que vivem com HIV e vivem bem”, comentou. 

Beatriz Melo concordou e acrescentou que “é emergente democratizar a pauta e implementar ações efetivas que atendam às necessidades das mulheres dos mais diversos perfis socioeconômicos e culturais.”

Dra. Layze destacou que a área acadêmica ainda é muito deficiente no tema, e que recorrentemente ao longo da epidemia de HIV/aids foi levantado o conceito de ‘feminização da epidemia de HIV’.

Segundo a especialista, o termo que caiu em desuso, é um conceito que descreve a tendência de aumento da incidência do HIV entre mulheres em comparação com os homens. Isso significa que, ao longo do tempo, um número crescente de pessoas infectadas pelo HIV foram do sexo feminino.

De acordo com a médica, existem várias razões que transpassam a questão da chamada ‘feminização da epidemia de HIV’, incluindo desigualdades de gênero, questões culturais e sociais.  “O guia de terminologias do Unaids, lançado em 2017, traz esse termo que foi utilizado por décadas para dar ênfase a este impacto do vírus que começou a se disseminar entre mulheres. No processo de construção de conhecimento e das perspectivas do sobre o HIV, as mulheres cis começaram a se tornar infectadas e daí venho essa questão da feminização; mas ainda hoje, a gente infelizmente ainda vê esse termo circulados em artigos recentes [até 2021]. Este termo não é mais recomendado. Deve-se agilizar o critério de contexto epidemiológico atual do paciente para se utilizar os termos corretos”, falou.

‘‘Além disso, a gente falava sobre feminização dentro somente do contexto de mulheres cis, e esse termo também era ligado a questão de promiscuidade com relação às profissionais do sexo. Este pensamento excluía pessoas, e tinha-se digamos que que ‘um perfil’ de quem não era infectado, que até então eram mulheres héteros, com parceiros fixos, monogâmicas e teoricamente estáveis, ou seja, casadas. Essas mulheres não eram ‘perfil de HiV’; só que justamente essas mulheres e nesses contextos começaram a se infectar, e daí foi-se observando que relações que não eram mais monogâmicas trouxeram pra gente uma discussão, que não discutimos: sexualidade de forma macro.”

Sabrina Luz reafirmou: ‘‘O HIV não é mais uma sentença de morte, não é o fim da vida! Se o HIV fosse o fim, a minha vida teria acabado em 2010’’.

Beatriz Melo levantou o debate acerca de qual deve ser o manejo ideal com esta população, para implementar ações que realmente conversem com a população feminina. “Enquanto a gente não reconhecer que diversidade sexual é real, faz parte da nossa natureza humana, que existem vários modelos de relações, e que devemos olhar para isso com clareza e seriedade reconhecendo as fragilidades de cada gênero e prática relacionado a cada orientação sexual, ainda vamos estar vendo casos novos de HIV surgir, mesmo diante de tantas possibilidades”, respondeu Dr. Maiky.

‘‘Entre os homens, geralmente vemos que quando recebem um diagnóstico de HIV, encontram apoio de outras mulheres dispostas a ajudá-los. No entanto, para as mulheres, é diferente. Elas frequentemente enfrentam o temor de que ninguém mais as amará, a sensação de que perderam o direito de exercer sua sexualidade, e carregam consigo um fardo de culpa, que tem raízes históricas relacionadas à sexualidade, já que estamos lidando, afinal, com uma epidemia sexual. Parece que quem é diagnosticado com HIV está, de certa forma, fazendo uma declaração pública sobre sua atividade sexual. A epidemia de HIV/aids entre mulheres é uma questão de gênero muito forte e para a gente lidar melhor com essas mulheres precisamos falar de sexo e ampliar a nossa caixinha’’, finalizou.

Confira a live na íntegra:

Kéren Morais (kéren@agenciaaids.com.br)

Dica de entrevista

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