Medicamentos de longa duração para tratamento e prevenção do HIV; amamentação por mulheres vivendo com HIV; mobilização social; comunicação como ferramenta estratégica de prevenção; a crise climática e seu impacto ambiental nas comunidades afetadas pelo HIV; e as perspectivas do ativismo digital como ferramenta para acesso à informação e redução do estigma. Não faltaram temas no Ecos de Munique. Realizado na sexta-feira (23) no Sindipetro, em Santos, o evento foi uma iniciativa do Instituto Cultural Barong e reuniu especialistas para discutir os principais pontos da 25ª Conferência Internacional de Aids (Aids 2024), ocorrida em julho, na Alemanha.

Parte da Global Week ODS da ONU, a iniciativa abordou as mais recentes inovações globais, tanto científicas quanto comunitárias, com foco nas novidades no combate ao HIV, intersecção entre saúde, meio ambiente e justiça social, e questões de representatividade da América Latina no evento.

Diretamente do Chile, o dr. Fábio Mesquita, médico epidemiologista e professor de Saúde Coletiva na Unifesp, abriu o Ecos de Munique destacando algumas inovações apresentadas na Aids 2024. Uma delas, conforme o especialista, que acompanha as Conferências de Aids desde a sétima edição, é a profilaxia pré-exposição (PrEP) injetável com o uso do Lenacapavir. “Em vez de tomar medicamentos diariamente ou sob demanda, agora é possível receber uma injeção a cada seis meses. Estão até pesquisando a possibilidade de que isso ocorra anualmente, oferecendo proteção contínua contra o HIV.”

Ele também mencionou novidades no campo das infecções sexualmente transmissíveis. “O destaque é a DoxiPrEP, que envolve o uso do antibiótico doxiciclina para prevenir sífilis, gonorreia e clamídia.”

Além disso, o dr. Fábio afirmou que outra inovação está no campo do tratamento, com a redução no número de medicamentos antirretrovirais necessários para tratar o HIV. “Antes, eram três medicamentos diferentes; agora, estudos mostram que apenas dois já são suficientes para manter o vírus indetectável. Quando o vírus é mantido indetectável, isso não só melhora a qualidade de vida da pessoa, mas também elimina o risco de transmissão para seus parceiros. São muitos avanços promissores.”

 Ciência e evidências

Assim como o dr. Fábio Mesquita, o médico Luis Brígido, do Instituto Adolfo Lutz, falou sobre avanços científicos da Aids 2024. Entre os tópicos abordados, ele destacou a possibilidade de interromper o tratamento sem riscos graves, como morte ou doenças severas. “Algumas pesquisas estão investigando essa possibilidade. O estudo apresentado revelou que, mesmo na presença do vírus, ele pode ser controlado sem tratamento em certos casos. No entanto, essa abordagem está em fase de investigação e a interrupção do tratamento não deve ser realizada fora de ambientes de pesquisa.”

Cura não elimina o risco de infecção

Outro ponto importante discutido foi o novo caso de cura associado a transplantes. O paciente, um homem de 60 anos, recebeu um transplante de medula óssea para tratar uma leucemia. O doador tinha uma mutação genética que confere resistência ao HIV. O dr. Luis Brígido explicou uma diferença importante no novo caso. “A mutação genética buscada é chamada CCR5Δ32/Δ32, que impede a produção da proteína CCR5, um receptor na superfície das células T CD4, principais alvos do HIV. Esse receptor atua como uma ‘fechadura’ pela qual o vírus entra. Indivíduos com essa mutação, e, portanto, sem o receptor, têm células resistentes à infecção, interrompendo a replicação do HIV e, eventualmente, eliminando-o por completo. Anteriormente, pacientes que alcançaram a remissão receberam medula óssea de doadores com duas cópias do gene mutante. No caso mais recente, o doador tinha apenas uma cópia do gene mutante, uma condição mais comum, pois menos de 1% da população possui duas cópias.”

O médico considera essa descoberta promissora para futuras estratégias de cura do HIV baseadas em terapia genética, pois sugere que não é necessário eliminar completamente o CCR5 para alcançar a remissão. “Esse paciente obteve uma remissão de longo prazo, com carga viral não detectável. No entanto, mesmo após a cura, o paciente ainda precisará de medicamentos preventivos para evitar novas infecções. As pesquisas continuam avançando, mas é crucial entender que a cura ainda não elimina completamente o risco de infecção.”

Medicação de longa duração

Sobre o estudo com Lenacapavir, considerado o assunto mais abordado na Aids 2024, o médico destacou que essa abordagem tem se mostrado como uma excelente opção de proteção. No entanto, ressaltou que a disponibilidade para a população geral ainda levará algum tempo. “Apesar da conveniência de uma injeção semestral, os comprimidos diários ainda proporcionam altos níveis de proteção contra a infecção pelo HIV. Não devemos abandonar as estratégias que já se mostraram eficazes.”

O médico também alertou para o problema da resistência aos medicamentos, especialmente em relação à profilaxia pré-exposição (PrEP). “Já foram observados casos de resistência ao cabotegravir, um medicamento utilizado na PrEP. Portanto, é essencial usar a PrEP corretamente para evitar resistência e assegurar a eficácia do tratamento. Nosso objetivo é tornar a PrEP mais acessível e simplificada, descentralizando a administração e permitindo que mais pessoas se beneficiem desse avanço.”

Pensando no alto custo do Lenacapavir, a diretora da Agência Aids, Roseli Tardelli, questionou o médico sobre o acesso global ao medicamento. “Fiquei bastante impactada com a informação trazida pelo Unaids, de que a cada minuto uma pessoa morre em decorrência da aids no mundo. Depois de 43 anos, isso ainda é muito significativo e demonstra a necessidade de melhorias contínuas. O debate entre comunismo e capitalismo persiste, e as patentes não serão derrubadas apenas por vontade, dado o grande investimento em pesquisa e desenvolvimento de medicamentos. Talvez o que seja necessário é a criação de mais núcleos de acesso à medicação, pois menos lucro pode significar mais acesso à vida humana. Gostaria de ouvir sua opinião sobre uma aliança global que garanta acesso universal ao novo medicamento.”

Na mesma linha, Fabi Mesquita Guarani, do Instituto Multiverso, acrescentou que a possibilidade de ter uma medicação a cada seis meses ou até mesmo uma vez por ano é quase como receber uma vacina. “É algo que fazemos anualmente para proteção. Fiquei incomodada com a declaração de que o Brasil talvez não tenha acesso a essas novas opções. Acho inaceitável que se diga que o Brasil não poderá se beneficiar desses avanços. Temos poder de negociação, e conseguimos um desconto de 95% em medicamentos para hepatite C. Se conseguirmos negociar descontos significativos para o Lenacapavir, poderemos ter acesso a essas novas opções de tratamento.”

Do Instituto Vida Nova, o ativista Américo Nunes acredita que com a pressão da sociedade civil, será possível garantir o acesso ao Lenacapavir no Brasil. “A luta é também pelo acesso a medicações novas e potentes, não podemos nos conformar só com o que já temos.”

Respondendo à Roseli, o médico disse ser a favor de uma aliança global, pois “a introdução de novos tratamentos pode transformar o cenário e trazer novas oportunidades na luta contra o HIV. Devemos trabalhar para melhorar o que temos, aproveitar os recursos disponíveis e garantir que todos tenham acesso ao tratamento necessário.”

Comunicação como ferramenta de prevenção

A comunicação foi destaque no Ecos de Munique. A jornalista Roseli Tardelli compartilhou um balanço das atividades da Agência Aids na Aids 2024. “Tivemos uma participação significativa na 25ª Conferência, acompanhando o evento desde as pré-conferências. Nossa equipe realizou a cobertura com o apoio de vários profissionais. Criamos a figura dos observadores no Instagram, onde médicos, ativistas, gestores e pesquisadores gravavam boletins sobre as principais discussões acompanhadas.”

Fundada em 2003, a Agência Aids cobre conferências internacionais desde 2004, começando em Bangkok. “É importante dizer que participar dessas conferências é difícil. Andamos muito e enfrentamos assuntos sérios que nem sempre conseguimos absorver completamente. Além do alto custo, o trabalho é exigente e cansativo. Este ano, por exemplo, tivemos dificuldades para que nossos colegas jornalistas aceitassem boletins gratuitos. Conseguimos parceria com o site Catraca Livre, o IG e um boletim na EBC. A cobertura de eventos importantes é complexa, especialmente com outras prioridades na mídia, como questões ambientais. A vida continua, e no imaginário das pessoas, a questão do HIV parece resolvida, embora saibamos que não está.”

A Agência fez 97 postagens no Instagram, publicou 63 notícias e 3 artigos. “Também realizamos uma entrevista exclusiva com a dra. Beatriz Grinsztejn, nova presidente da IAS. Ela é a primeira mulher latino-americana, brasileira e lésbica a assumir a IAS.”

Desde 2012, a Agência produz documentários nestes eventos. “Em 2014, fomos à Austrália, onde nosso documentário foi a primeira produção brasileira exibia em uma Conferência Internacional de Aids. Nesta edição, em parceria com o SescTV, produzimos o documentário 20 Anos do Global Village: As Respostas das ONGs do Mundo” disse Roseli, enfatizando a importância da comunicação.

“Estou aqui porque perdi um irmão; caso contrário, talvez não estivesse. A verdadeira motivação para agir surge quando algo nos toca profundamente. Por isso, precisamos mudar nossa maneira de comunicar para que nossa causa realmente alcance o coração das pessoas. A mandala da prevenção, por exemplo, apresenta falhas ao não incluir a comunicação. Para enfrentar os desafios do HIV, especialmente na região da baixada, a mídia deve ser uma parceira essencial. Hoje, estou aqui, em parte, graças ao apoio de amigos jornalistas que ajudaram a divulgar informações críticas quando meu irmão enfrentava resistência do convênio médico para receber atendimento. A atuação da mídia foi fundamental para transformar nossa realidade”, relembrou Roseli, destacando a luta de sua família para garantir o atendimento de seu irmão, Sérgio Tardelli, nos primeiros anos da aids.

“Eu realmente acredito na informação como um instrumento de prevenção e transformação no mundo. Por isso, temos compromisso e dedicação em nosso trabalho. São esses propósitos que norteiam nosso ofício.”

Mulheres no centro da resposta

Para Fabi Mesquita Guarani, a conferência foi um marco para as mulheres. “Primeiro, colocamos uma mulher lésbica, incrível, na presidência da IAS. Vocês não têm ideia do que isso significa. Ser uma mulher e ocupar a presidência da IAS vai mudar a história da organização, e precisamos ser inteligentes para aproveitar esse momento. O olhar feminino traz uma perspectiva diferente.”

Um dos debates que mais chamou a atenção de Fabi em Munique foi sobre a amamentação por mulheres vivendo com HIV. “Esse tema nunca tinha sido abordado. Por quê? Porque não é considerado uma questão de vida ou morte. Dizem para a mulher: ‘não amamente para não transmitir.’ E pronto. A mulher não amamenta e não transmite. Você resolveu o problema, entre aspas, do ponto de vista de saúde pública. Mas e a mulher que teve seu vínculo com o bebê rompido por não poder amamentar? O que isso significa para ela? O que realmente importa para essa mulher? Vi as pessoas discutindo, trazendo tecnologias, e colocando o lema da conferência em prática: colocar as pessoas em primeiro lugar.”

Outro ponto que impactou a ativista foi perceber a América Latina muito apagada. “Achei que isso aconteceu porque o Brasil estava apagado, e o Brasil é um país que lidera. Precisamos retomar nossa força. Até nos perguntamos: ‘Está havendo preconceito com a América Latina?’ São reflexões que precisamos fazer.”

Fabi usou o Ecos para convocar todos os participantes à ação. “Vamos nos reunir, cientistas? Vamos conversar? Precisamos de mais diálogo. Há muitas questões a serem discutidas. Sabemos que existem muitas linhas de financiamento e projetos, mas, às vezes, é fácil para grandes organizações conseguirem apoio, enquanto as menores, mais novas, encontram dificuldades. Temos organizações de trabalhadores do sexo, de jovens, de indígenas. Como vamos garantir que alguém de uma aldeia possa ter um projeto de redução de danos? Como democratizar e facilitar o acesso às oportunidades para que não fiquem sempre com as grandes organizações?”

Ela encerrou sua fala com uma proposta de organizar um evento de comunicação e arte. “Vamos colocar tudo para funcionar. Vamos discutir projetos. Onde quer que vocês estejam, vamos trabalhar com a juventude. Eles são o futuro, mas também o presente. Temos uma responsabilidade.”

 O HIV diz respeito a toda a humanidade

O jornalista Alberto Pereira Jr., homem negro que vive com HIV há 15 anos, iniciou sua fala no Ecos de Munique falando a presença constante do vírus em nossas vidas nas últimas quatro décadas. Ele ressaltou que, muitas vezes, ignoramos essa realidade ou a enxergamos como algo distante, embora “convivamos diariamente com pessoas vivendo com HIV/aids, sejam elas vizinhos, colegas de trabalho ou familiares, que podem ou não compartilhar abertamente sua condição.” Alberto enfatizou que, apesar dos esforços científicos para erradicar o HIV, o medo não será o fator que o fará desaparecer.

Ele compartilhou sua experiência pessoal, contando que descobriu sua sorologia aos 22 anos, três meses após ser promovido a colunista do jornal “Folha de São Paulo”. Mesmo em meio a uma ascensão profissional, realizando sonhos, viajando e trabalhando intensamente, o diagnóstico não o impediu de seguir em frente. “O HIV não para ninguém. O que realmente nos impede são o preconceito, a falta de acesso a medicamentos e a ausência de empatia social resultante do desconhecimento”, afirmou.

Para Alberto, é importante abordar o tema não apenas sob a ótica científica, mas também considerando o aspecto humano e reforçou que é essencial colocar as pessoas em primeiro lugar, já que os avanços científicos existem para melhorar a vida de todos.

“É fundamental intensificar a disseminação de informações corretas por meio de redes sociais, meios de comunicação tradicionais e interações pessoais. O HIV não é um assunto restrito a algumas pessoas, diz respeito a toda a humanidade. Ao compartilhar conhecimento e promover diálogo, conseguimos reduzir a transmissão do vírus e alcançar aqueles que ainda não têm acesso adequado à informação, mesmo em um país como o Brasil, que oferece tratamento universal e gratuito”, destacou.

Ao falar sobre sua própria jornada, Alberto mencionou que sua vida social se transformou quando passou a abordar abertamente sua condição de pessoa vivendo com HIV.  “Dez anos após viver com HIV e prosperar na vida, realizando meus sonhos, entendi que precisava sair do meu último armário. Cresci em uma família negra e pobre, então sei o quanto foi difícil chegar onde estou. Quando me tornei uma pessoa positiva, vivendo com HIV, compreendi que minhas características, que são comuns a tantos outros brasileiros, precisavam ser compartilhadas, não porque sou especial, mas porque meu trabalho como jornalista e produtor audiovisual me colocou em espaços onde outras pessoas como eu não teriam voz.”

“Comunicar e conversar abertamente é fundamental. Somos uma sociedade composta por diferentes histórias e experiências, unidas pela diversidade. Juntos, somos mais fortes”, afirmou.

Mudanças Climáticas

A artista visual e diretora do Barong, Adriana Bertini, destacou que seu principal interesse nas Conferências está nas discussões sobre o impacto das mudanças climáticas e a eficácia dos medicamentos em ambientes insalubres. “Minha primeira participação em uma conferência foi em 2000, em Durban. Desde então, cada evento me leva a mais perguntas sem respostas, especialmente sobre o impacto ambiental das ações humanas e como podemos criar estratégias comunitárias eficazes para promover a educação ambiental.”

Ativista desde os 11 anos, Adriana se especializou em transformar lixo urbano, resíduos escolares e industriais, materiais que não passaram no controle de qualidade, em obras de arte. “Meu objetivo é gerar um impacto positivo e disciplinar através da arte. Neste ano, o tema foi abordado em um dos debates sobre direitos humanos na Conferência, mas ainda há muitas questões sem respostas sobre como a ciência está se preparando para enfrentar os desafios ambientais e suas consequências.”

Adriana também levantou preocupações sobre o descarte inadequado de testes rápidos de HIV e outros dispositivos médicos, o que, segundo ela, evidencia um retrocesso nas práticas de saúde e destaca a necessidade urgente de repensar essas questões em um contexto mais amplo. “É fundamental unirmos forças para enfrentar esses desafios ambientais e sociais. Precisamos de novas estratégias, colaboração entre diferentes áreas e recursos para lidar com as mudanças climáticas e suas consequências.”

O Ecos de Munique chegou ao fim com o compromisso de todos os participantes multiplicar a informações.

Talita Martins (talita@agenciaaids.com.br)

 Dica de entrevista

Instituto Cultural Barong

Tel.: (11)96636-3897