Com o objetivo de promover uma conversa informal sobre as discussões da 25ª Conferência Internacional de Aids, realizada em julho em Munique, Alemanha, representantes da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (ABIA) e do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual (GTPI) realizaram na tarde desta quarta-feira (21) o webinar “Ecos Aids 2024”.

O evento contou com a presença do pesquisador e vice-presidente da ABIA, Veriano Terto Jr., da advogada da ONG, Susana van der Ploeg, e da farmacêutica do GTPI, Carolinne Scopel. Eles destacaram que a conferência foi marcada por protestos que evidenciaram desafios importantes e controversos na luta contra a epidemia, como o financiamento insuficiente para organizações que apoiam pessoas vivendo com HIV/aids e o monopólio das grandes farmacêuticas sobre patentes. Os especialistas também discutiram a diversidade de temas abordados no evento, ressaltando que dificilmente o mundo alcançará as metas da ONU para o fim da aids como problema de saúde pública até 2030.

Veriano iniciou o webinar lembrando que a Conferência Internacional de Aids é um evento bienal, cuja primeira edição ocorreu em 1985, em Atlanta. “Embora a conferência tenha sido inicialmente dominada por aspectos biomédicos, a partir de 1988, em Estocolmo, houve uma crescente ênfase nas questões sociais. A introdução do ‘Global Village’ e a ampliação dos tópicos abordados marcaram a conferência como um espaço mais intersetorial, envolvendo ciências sociais e participações comunitárias.”

Ele também ressaltou que, ao longo dos anos, várias edições da Conferência de Aids trouxeram marcos históricos para a luta contra a pandemia. A conferência de 1996 em Vancouver, por exemplo, evidenciou a eficácia da combinação tripla de antirretrovirais no tratamento do HIV.

O presidente da ABIA, Richard Parker, presente no webinar, destacou a Conferência de 2000 em Durban como uma das mais importantes da história. Foi a primeira realizada no Sul Global e evidenciou as desigualdades no acesso a medicamentos e as questões éticas em pesquisa. “Essa conferência aconteceu em um momento em que havia uma porcentagem muito grande da população vivendo com HIV/aids, e os cientistas do norte puderam ver a verdadeira face da pandemia. Isso foi transformador na maneira como a comunidade internacional, não só científica, mas de todas as áreas, passou a ver a aids.”

Munique

A conferência mais recente, em Munique, reuniu cerca de 10 mil participantes, marcando um retorno significativo ao formato presencial após as restrições impostas pela pandemia. “A ABIA sempre esteve ativa nas conferências e contribuiu com comitês científicos ao longo dos anos, ressaltando a importância da pesquisa social na formulação de políticas de HIV/aids. Esta conferência resgatou o espírito de colaboração e debate pré-pandemia, enfatizando a necessidade de equilibrar a abordagem biomédica com as dimensões sociais e políticas da epidemia”, disse Veriano.

Abertura da Global Village

Convidado para falar na sessão de abertura da Global Village, Veriano fez uma reflexão que ligava o passado ao presente e apontava recomendações para o futuro. “Procurei resgatar brevemente algumas das contribuições da sociedade civil ao longo dos anos no enfrentamento da epidemia. Mencionei temas como sexo seguro, a articulação com direitos humanos, e as discussões sobre identidades estigmatizadas, como HSH (homens que fazem sexo com homens), usuários de drogas, trabalhadores do sexo, entre outros. Enfatizei também os desafios atuais, como a falta de financiamento para a sociedade civil e para respostas mais amplas à epidemia. Atualmente, enfrentamos quase um monopólio de dois grandes financiadores, que são, em grande parte, a própria indústria farmacêutica — a mesma que cria obstáculos ao acesso a medicamentos antirretrovirais e futuras vacinas. Além disso, mencionei a erosão das democracias ao redor do mundo e como isso ameaça a resposta global à epidemia, citando a ascensão de governos autoritários como Bolsonaro, Milei, Modi e outros movimentos de extrema direita na Europa e nos Estados Unidos, que colocam em risco a sustentabilidade financeira, programática e política das comunidades envolvidas no combate ao HIV/aids.”

Sobre o futuro, Veriano ressaltou a necessidade de resgatar o princípio de solidariedade e a importância de manter a dimensão dos direitos humanos. “Destaquei a luta contra o estigma, que se torna ainda mais relevante com a criminalização crescente associada à ascensão de governos radicais. O painel foi um tanto despolitizado, com a presença apenas de um famoso ator pornô alemão e eu, discutindo direitos humanos, enquanto outros participantes focaram em seus próprios trabalhos específicos, sem considerar a natureza global da resposta à aids.”

Outros debates

Ao longo da conferência, Veriano contou que esteve em diferentes discussões, uma delas foi sobre os 40 anos da luta comunitária na resposta à aids e a contribuição das ONGs. “Este painel também apresentou desafios, pois as colegas de fala focaram exclusivamente em suas experiências locais, sem reconhecer a dimensão internacional e histórica da resposta à aids, que é global e não se limita a projetos locais. Enfatizei a importância de valorizar as contribuições da sociedade civil, que muitas vezes são esquecidas. Relembrei inovações como manuais e oficinas sobre sexo seguro e outras abordagens que, embora pioneiras, foram cooptadas por agências ou desapareceram devido à falta de financiamento.”

No simpósio sobre acesso a medicamentos, que teve como foco central tornar os medicamentos acessíveis, Veriano destacou que a universalidade do acesso ainda está longe de ser alcançada. “Os desafios estão se agravando, não apenas devido ao fortalecimento das patentes, mas também às limitações de mecanismos de regulação comercial. É importante observar a combinação da falta de financiamento com o endurecimento das regulamentações comerciais. O monopólio das grandes agências é um desafio crescente, afetando tanto o tratamento quanto as perspectivas de cura. A situação está muito pior do que há 10 anos.”

Ele continua: “O que disse reflete a tônica das discussões na sociedade civil. Um ponto que me chamou a atenção foi a reclamação de vários participantes da IAS sobre a falta de protestos durante a conferência. Muitos de nós, ativistas, estávamos receosos devido à situação delicada na Alemanha. Realizamos protestos sobre a Palestina, especialmente em resposta ao manifesto da IAS sobre a situação em Gaza e os ataques aos hospitais e profissionais de saúde. Achamos importante não deixar que apenas a IAS se pronunciasse sobre Gaza, mas lamento que as ONGs não estivessem mais ativas nessas questões e na questão do acesso a medicamentos. Notei uma falta de engajamento dos jovens nas manifestações, o que é preocupante. Vi a necessidade de renovar o ativismo, pois muitos jovens não demonstraram interesse em participar dos protestos, especialmente em relação a questões como Dolutegravir e Lenacapavir.”

Por fim, Veriano expressou preocupação com a falta de visibilidade da aids no mundo. “É angustiante perceber que, apesar dos avanços, enfrentamos tantos desafios globais, incluindo novas pandemias e problemas persistentes. A falta de financiamento é uma questão crítica e, se continuar assim, o que está em risco não é o fim da aids, mas o fim da resposta à aids. Vai haver um grande silêncio em torno da aids, enquanto a doença continua a existir.”

Dados alarmantes

A advogada Susana lembrou que a 25ª Conferência teve como tema central “Put People First” (Colocar as pessoas em primeiro lugar) e destacou os últimos dados do Unaids sobre a aids no mundo. “Em 2010, havia 33 milhões de pessoas vivendo com HIV, e em 2023 esse número aumentou para 40 milhões. Atualmente, 29 milhões dessas pessoas estão sob terapia antirretroviral. As infecções anuais somam 1,3 milhões e as mortes, 630 mil. Esses números continuam alarmantes, apesar da diminuição das taxas de infecção anual.”

Com base nos dados, a especialista chamou atenção para o preço do dolutegravir, tratamento de primeira linha, que “é de 45 dólares por pessoa por ano globalmente, mas no Brasil chega a 323 dólares”.

Segundo Susana, a licença voluntária que conseguiu diminuir o preço do dolutegravir em 126 países não incluiu Brasil e Colômbia, devido às patentes concedidas nesses países. “A Colômbia, que tem um preço ainda mais alto, fez uma licença compulsória após pressão da sociedade civil. A ViiV tenta barrar essa licença, alegando que é ilegal. Fizemos uma manifestação na Conferência pedindo para a ViiV abandonar o caso, destacando que a empresa não deveria contestar a licença compulsória.”

Ao exibir algumas fotos sobre a participação na Conferência, a advogada “disse que durante o “utilizamos jalecos brancos como forma de protesto para lembrar a importância da participação da comunidade e do financiamento adequado. As manifestações, como mencionei, incluíram muitos protestos sobre o lucro das farmacêuticas.”

Propriedade intelectual

Para Caroline Escopel, sanitarista e consultora farmacêutica no GTPI, um dos espaços mais importantes da Conferência foi o workshop organizado pelo ITPC sobre a propriedade intelectual, que é um tema central no acesso a medicamentos. “Durante a conferência, notamos que a discussão sobre a propriedade intelectual estava em segundo plano. Esse workshop focou nas oposições de patentes como uma ferramenta importante para o acesso a medicamentos e foi organizado de forma a ser acessível para as comunidades.”

O workshop, segundo ela, abordou o conceito de patenteamento múltiplo e como isso afeta o acesso a medicamentos. “Utilizamos uma analogia com a fabricação de bolos para explicar as diferentes formas de patenteamento e suas implicações. Também discutimos experiências de países como Brasil, Argentina, Ucrânia, Índia e Tailândia na oposição a patentes para garantir o acesso a medicamentos. Outra ferramenta essencial discutida foi a tabela política, criada pelo GTPI desde 2017. Essa ferramenta é fundamental para a sociedade civil e pode ser usada para pressionar governos e entender a situação dos preços dos medicamentos. A tabela compara preços nacionais com internacionais e destaca questões de monopólio e concorrência.”

Assista a seguir o webinar na íntegra:

 

Redação da Agência de Notícias da Aids

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