Realizado em Brasília pelo Departamento de HIV/Aids, Tuberculose, Hepatites Virais e IST (DATHI/SVSA/MS) nessa sexta-feira (30), o “Seminário Caminhos para Prevenção: Ampliação do Acesso e Promoção da Equidade”, trouxe à tona os desafios das novas formas de sociabilidade e o impacto das tecnologias digitais na prevenção e na saúde sexual. Com discussões que passaram pelo chemsex, o uso de aplicativos de encontro e a transformação do trabalho sexual, especialistas destacaram a necessidade urgente de políticas públicas inovadoras para garantir que os avanços no combate ao HIV sejam acessíveis a todos.

O “Seminário Caminhos para Prevenção: Ampliação do Acesso e Promoção da Equidade”, promovido pelo Departamento de HIV/Aids, Tuberculose, Hepatites Virais e IST (DATHI/SVSA/MS) em 30 de agosto, abriu espaço para discussões cruciais sobre estratégias de prevenção no Brasil. O evento destacou a necessidade de reavaliar e aprimorar as ações em curso com o objetivo de eliminar a AIDS até 2030.

Na abertura do evento, Artur Kalichman, coordenador-geral de HIV/Aids e representante do Comitê Técnico Assessor de Prevenção, reforçou: “A prevenção é fundamental para isso… sem prevenção, a gente não chega”. Ele também chamou atenção para as desigualdades que ainda persistem no acesso às iniciativas de saúde: “Queremos chegar à eliminação em 2030, mas eliminação para todos, e não para alguns”.

O gestor evidenciou como um avanço significativo dentro do DATHI, a recente realização da primeira reunião do Comitê, que foi concebido para ser amplo e diverso, reunindo representantes da sociedade civil, gestão pública, academia e movimentos sociais, com o objetivo de enfrentar as iniquidades no acesso à prevenção e tratamento.

Integrante do Comitê, o médico infectologista Vinícius Borges, conhecido como “Doutor Maravilha”, também ressaltou a importância de democratizar o acesso às novas tecnologias de prevenção e testagem, alertando sobre as lacunas entre diferentes grupos: “Será que todos vão se beneficiar tão rápido desses avanços?”.

Tatiana Alencar, coordenadora do Núcleo de Prevenção dentro da Coordenação Geral de HIV/aids, salientou o formato participativo do evento: “A ideia é criar um espaço de fala e escuta entre profissionais de saúde, gestores, acadêmicos e sociedade civil para compartilhar experiências e ampliar o alcance das estratégias de prevenção”.

A primeira mesa, intitulada “Encontros, Trocas e Sexo na Era das Mídias Sociais”, mediada por Alexandre GrangeiroPesquisador da Faculdade de Medicina – Universidade de São Paulo, trouxe discussões profundas sobre práticas contemporâneas e os desafios de prevenção no contexto das novas formas de sociabilidade. Com uma abordagem multidisciplinar, foram destacados temas como chemsex, uso de aplicativos de encontro e o impacto das mídias sociais nas práticas sexuais.

Karin Di Monteiro, colaboradora do Centro de Convivência É de Lei (SP), abordou o tema “Chemsex: Cenas, Práticas e Prevenção”, enfatizando o aumento do uso de drogas injetáveis durante práticas sexuais e suas implicações. “A prática do chemsex [sexo com uso de drogas] tem se mostrado extremamente complexa, com várias nuances que precisam ser abordadas, especialmente o uso injetável, que está crescendo rapidamente”, afirmou Karin.

Ela afirmou que, embora essa prática tenha surgido originalmente entre homens gays, ela agora abrange um grupo mais diverso de pessoas, incluindo trans e não-binárias: “Os usuários que nos procuram não são apenas homens gays, são corpos dissidentes, pessoas que estão à margem da norma”.

Karin chamou atenção para a falta de informações adequadas e a carência de apoio para os usuários, que frequentemente se encontram em situações de vulnerabilidade e sofrimento mental: “Muitas vezes, os usuários chegam pedindo ajuda para internação, e isso levanta a questão de para onde direcioná-los”. Ela enfatizou a importância de fornecer informações sobre as substâncias utilizadas, como metanfetamina e GHB, e de criar estratégias de atendimento mais individuais e sigilosas, devido à natureza sensível e estigmatizada do chemsex. “Estamos tentando inventar novas formas de lidar com essas questões, que, apesar de não serem totalmente novas, estão combinadas de maneiras diferentes”.

No final da apresentação de Karina, Grangeiro pontuou a importância de haver um reconhecimento do problema, de se criar uma expertise sobre isto e, a partir dessa expertise, criar uma política pública contundente para dar a resposta a um problema que está bastante evidente no dia a dia.

Para falar sobre os “Aplicativos de Encontro e Novas Formas de Sociabilidade”,  foi chamada Larissa Pelúcio, pesquisadora da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp/SP. Ela discorreu sobre as transformações provocadas pelos aplicativos de relacionamento nos últimos anos e explicou como esses aplicativos impactaram profundamente a forma como as pessoas se relacionam, flertam e se cuidam.

Pelúcio mencionou que os aplicativos chegaram ao Brasil em 2013, inicialmente com certa desconfiança e vergonha associada ao uso, pois havia a percepção de que quem os utilizava era socialmente fracassado. No entanto, hoje, eles se tornaram ferramentas legítimas de paquera, especialmente para gerações mais jovens, que praticamente não conhecem outro modo de flertar sem o uso de apps. “Tem uma geração entre 20 e 30 anos que nem sabe paquerar sem ser pelo aplicativo”, afirmou. Ela também mencionou que a conectividade contínua e a “gramática dos memes, links e áudios” criaram um novo roteiro para a intimidade.

Além das mudanças comunicacionais, Larissa comentou como as transformações sociais e políticas, como o avanço dos debates sobre gênero, sexualidade e direitos à saúde, também alteraram as dinâmicas de interação. Termos como “não monogamia”, “heteronormatividade”, e o uso de tecnologias preventivas como a PrEP (Profilaxia Pré-Exposição) passaram a compor o vocabulário de quem utiliza essas plataformas.

Um ponto interessante levantado por Larissa foi o efeito paradoxal dos avanços preventivos, como a PrEP, que por um lado são vistos como libertadores, mas por outro, ainda enfrentam estigmas: “Muitas vezes, dizer que usa PrEP no aplicativo pode ser lido como ‘você não usa camisinha'”. Ela também destacou que, apesar dos avanços tecnológicos, a sorofobia (preconceito contra pessoas soropositivas) persiste, o que pode levar à banalização do HIV como uma “doença crônica controlável”, sem diminuir o estigma.

A pesquisadora concluiu refletindo sobre as ambivalências presentes nas interações mediadas por aplicativos, como a exclusão causada pela “lógica algorítmica”, que reforça padrões de corpo e beleza, criando um cenário de abundância e efemeridade. “Precisamos tomar cuidado com os nossos likes para eles não reiterarem os mesmos preconceitos que nos interpõem no offline”, alertou Pelúcio, destacando a importância de pensar essas dinâmicas para a formulação de políticas de prevenção e cuidado em saúde.

“Já tem alguns estudiosos da área que dizem as novas gerações já habituadas com a plataformização da vida vão olhar para nós como, mais ou menos, como nós olhamos para a idade média”, acrescentou Grangeiro. “Isso coloca para nós um grande desafio. Só vou lembrar três coisas: que há uma forte associação entre o uso dos aplicativos para encontro de parceiros e aumento de IST e hepatites muito bem documentada. Para HIV não é tão evidente. E a terceira questão que eu queria chamar a atenção, é dizer que, de fato, essa é a nova praça pública”.

Encerrando a primeira mesa do Seminário, a pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Carolina Bonomi, fez a apresentação intitulada “Aplicativos de Encontro e Novas Formas de Sociabilidade”, abordando o impacto das mídias sociais e aplicativos no contexto do trabalho sexual, destacando as profundas transformações que ocorreram nos últimos anos.

Bonomi esclareceu que o termo trabalho sexual passou por diversas fases e ganhou novas conotações com o surgimento das tecnologias digitais, especialmente com a popularização dos smartphones e redes sociais. Ela observou que a visão tradicional de prostituição foi sendo expandida para abarcar uma gama mais ampla de serviços sexuais, envolvendo sensualidade, desejo e prazer, tanto no ambiente presencial quanto no digital. “A prostituição agora não é mais suficiente para definir todas as práticas”, afirmou, defendendo a ideia de que o termo trabalho sexual hoje serve como um “guarda-chuva” para outras formas de serviços sexuais tarifados.

A pesquisadora enfatizou a importância da autonomia no trabalho sexual contemporâneo, especialmente em plataformas como OnlyFans, Privacy e Câmera Privé, que permitem aos trabalhadores do sexo produzirem e distribuírem seu próprio conteúdo, sem a necessidade de intermediários. “A ideia de se chamar autônomo ou empreendedor é uma maneira de fugir do estigma da exploração sexual”, ressaltou Bonomi. Ela contou que a plataformização do trabalho sexual, assim como em outros setores, trouxe uma nova dinâmica ao campo, possibilitando que as pessoas gerenciem seu próprio trabalho de maneira mais independente, mas também criando novas formas de precarização e informalidade.

Bonomi disse ainda que essa mudança no trabalho sexual não é isolada, mas faz parte de um movimento maior de plataformização da vida, no qual atividades que antes eram analógicas, como a prostituição e a pornografia, se digitalizaram. “O streaming agora é muito importante. Plataformas como X-Video e Pornhub transformaram a forma como o conteúdo é consumido”, comentou, explicando que, diferentemente do passado, os trabalhadores do sexo podem agora criar e vender seus próprios vídeos e fotos diretamente ao público.

A pesquisadora concluiu que, apesar das inovações tecnológicas, o estigma e as vulnerabilidades ainda permanecem fortes. No entanto, essas novas plataformas trouxeram à tona discussões sobre a autonomia e controle no trabalho sexual, que precisam ser entendidas dentro de um contexto mais amplo, envolvendo também questões de segurança, saúde, estigmatização e precarização.

 

Redação da Agência de Notícias da Aids

 

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