Daniela Martins e seu filho Bruno Martins (Imagem: Arquivo Pessoal/Reprodução)

Do ventre ou do coração, as mães nutrem seus filhos com amor e dedicação, resistindo todo dia. Mãe é sinônimo de coragem, carinho, zelo, cuidado, proteção, amor incondicional, colo, apoio, sabedoria e paciência. Ser mãe, apesar de todos os desafios e responsabilidades, é algo lindo. As figuras maternas têm o papel de guiar, educar e inspirar seus filhos, ensinando e aprendendo com eles. Daniela Martins, driblou o estigma e o preconceito para estar hoje presente e encorajando outras pessoas. Nesta semana do Dia das Mães, a Agência Aids conta sua história.

Filha da dona Neide, mãe do Bruno, vovó do Murillo e da pequena Letícia, Daniela Martins, 42, desempenha múltiplos papéis. É também motorista de aplicativo, influenciadora digital e vive com HIV há pouco mais de cinco anos. Corajosamente, tem dedicado seus dias a combater o estigma, esclarecendo o assunto HIV/aids e ajudando outras pessoas vivendo com vírus a viverem melhor, sem medo.

Quarta filha de uma família de cinco irmãos, nascida no interior do Rio Grande do Sul, sua família frequentemente se mudava devido ao trabalho de seu pai, que exigia estes deslocamentos. Assim, Daniela e seus irmãos passaram por várias mudanças de cidade durante a infância. Por volta dos seis ou sete anos de idade, eles estabeleceram residência permanente na região metropolitana de Porto Alegre. Hoje, vive em Sorocaba, interior de São Paulo.

O diagnóstico

O que hoje encara com muita maturidade e sabedoria, nem sempre foi assim. Daniela se viu confrontada por muitas dúvidas e incertezas, sendo reprimida pelo medo do desconhecido quando recebeu o diagnóstico positivo para o HIV. Ela compartilha que ao longo de sua vida não contou com a sorte de receber uma educação sexual adequada, com questões de saúde, consentimento, sexualidade e prevenção. “[…] a informação sobre esses temas foi muito limitada naquela época. Minha mãe não teve essas instruções, pois não recebeu essa informação da minha avó, que consequentemente não recebeu da minha bisavó e assim por diante. Então, eu nunca aprendi a falar sobre prevenção, cuidado, e até mesmo sobre menstruação.”

Traçando uma linha do tempo, Daniela sabe que o HIV entrou em sua vida em 2018. “Eu estava tendo um relacionamento. Algum tempo depois ele rompeu comigo, e me ligou dizendo que estava doente. Este meu [ex-companheiro], havia feito uma série de exames, me falou que tinha recebido o diagnóstico positivo de hepatite B e que como a gente havia tido relação sexual desprotegida algumas vezes, era prudente que eu também fizesse os testes.”

Daniela relembra que, desde o início, mantiveram um relacionamento com o uso do preservativo. Em certo momento, porém, houve uma mudança de comportamento e ambos passaram a não usar camisinha. “Não transamos muitas vezes sem proteção, isso é bem importante de enfatizar, porque há pessoas que acreditam que precisa transar várias vezes para acontecer alguma coisa. E não precisa. Às vezes não precisa nem ter uma relação completa.”

“Fui para a unidade de saúde do meu bairro, já convencida que teria um diagnóstico positivo para hepatite B. Eu sabia do risco, da gravidade e da chance do contágio, mas no fim das contas, acho que foquei tanto na hepatite, que não pensei em nenhum momento que poderia também dar positivo a outras [infecções]. Daí, de certa forma para a minha surpresa, deu positivo também para o [teste] de HIV. Digo de certa forma ‘surpresa’, porque quem tem relação desprotegida não pode dizer que está surpreso, pois sabe que está se colocando em exposição.”

Apesar de não ser um hábito, Daniela já havia se testado antes, foram testagens pontuais e seu nível de conhecimento com relação ao HIV era bastante raso. “Eu sabia que se tivesse relação sem preservativo poderia pegar o vírus, sabia que estaria me expondo, e também sabia alguma coisa sobre a terapia antirretroviral, mas era apenas isso que tinha de informação naquela época.”

A comunicadora acredita que ignorar a existência do problema não ajuda, pelo contrário, perpetua danos, estigma e desinformação, o que consequentemente tira vidas. Por isso, se tornou uma voz contra a discriminação.

Aceitação do diagnóstico

Para Daniela, assim como para inúmeras pessoas, o autoconhecimento foi fundamental lidar com a sorologia. Atualmente, com muita liberdade, coragem e sinceridade,ela expõe seus desafios e conquistas nas redes sociais, inspirando outras pessoas, embora nem sempre lidou assim com a situação.

Ela enfrentou um período de muito medo e vergonha, onde se escondeu das suas próprias verdades, mas segundo ela, só tomar o remédio não era o suficiente.

“No começo eu neguei. Entendi na época que tinha que fazer um tratamento e pensei: Ok, vou fazer. Iniciei o tratamento para continuar a viver. Fiz os exames, passei no acolhimento, na assistência social, peguei medicamento, fiz carga viral, CD4, em menos de 6 meses comecei a ter carga viral limite mínimo e em seguida já fiquei com carga indetectável. Ali, compreendi que não estava doente, que estava tudo sob controle e pronto e que não precisava mais me preocupar com isso. Só que depois, com o tempo, compreendi que o que pra mim era simplificar o diagnóstico, era na verdade uma situação de negação.”

Virada de chave

(Imagem: Arquivo Pessoal/Reprodução)

Daniela conta que entendeu que viver com HIV não era um bicho de sete cabeças ou uma sentença de morte,quando o seu filho Bruno, que trabalhava em um navio de cruzeiro, se envolveu emocionalmente com uma colega de trabalho durante a pandemia de covid.

Ele voltou para o Brasil e os dois decidiram morar juntos. A parceira dele, muito apaixonada por desenvolvimento pessoal, apresentou esse universo para ele. Intrigado e com desejo de compartilhar todas as suas descobertas com a mãe, Bruno, que era uma das poucas pessoas que sabia do diagnóstico de Daniela, decidiu entender melhor esses conceitos para poder ajudá-la. A partir daí elacomeçou a estudar, influenciada positivamente pelo interesse de seu filho.

“Fiz um treinamento em uma empresa, em Santos, nesse treinamento, eu preenchi um [formulário] que perguntava se tomava algum remédio de uso contínuo e se eu tinha alguma condição de saúde que a equipe deveria saber. Eu perguntei para o meu filho o que deveria fazer e ele falou: ‘Mãe, segue o teu coração’. Resolvi colocar que faço uso da terapia antirretroviral porque vivo com HIV e essa foi a primeira vez que eu externei, de fato, a minha sorologia. Mesmo que fosse para um público limitado ali, com a minha sorologia protegida. A partir desse treinamento e com ajuda do Bruno e da Pati [nora], fui trabalhando o autoconhecimento e comecei a entender que não estava bom para mim. Eu não tinha paz com a minha sorologia. Eu a aceitava, porém, a minha parte emocional não estava trabalhada. Me perguntava o tempo todo como eu poderia ser feliz, viver a minha vida e ajudar outras pessoas enquanto eu não conseguia ser feliz nem comigo mesma.”

“[Com autoconhecimento], passei a entender então que, primeiro, eu não tenho controle sobre a emoção das outras pessoas. Se elas tiverem que sofrer, elas vão sofrer pelo meu diagnóstico ou até se elas baterem o dedinho no pé do sofá. Então, eu não tenho o que fazer. O que eu posso fazer é procurar a forma mais gentil de contar e agir para diminuir um pouco o impacto, trazendo para essas pessoas o mesmo acolhimento que eu preciso. Ou seja, é uma troca equilibrada de acolhimento. Não é o fim do mundo, então não preciso encarar como se fosse. É só um fato e pronto. A vida segue.”

(Imagem: Arquivo Pessoal/Reprodução)

Acolhimento

Daniela começou a questionar-se e encorajar-se internamente sobre como a sua experiência poderia ajudar os outros, especialmente outras mulheres e mães que estariam enfrentando situações semelhantes à sua. Ao perceber o quanto poderia impactar histórias, reconheceu que seu apoio e acolhimento poderia trazer conforto para quem deseja colocar sua voz no mundo, mas também para todas aquelas que preferem manter seu diagnóstico em segredo. Esses questionamentos despertaram um desejo tão latente dentro de si, que conseguiu organizar seus pensamentos, sentimentos e ações. “Fiz uma listinha com algumas pessoas que eu fazia questão de contar. Então chamei primeiro a minha irmã mais nova, depois o meu pai, depois os meus outros irmãos, meus sobrinhos e alguns poucos amigos. A reação foi: ‘Nossa, achei que fosse alguma coisa muito mais grave; você está bem? É o que importa! Eu pensei que iria me dizer que estava com câncer. O câncer é grave e o tratamento é bem mais agressivo, tem remissão…”.

Daniela nunca sofreu preconceito explícito por viver com HIV, nem dentro nem fora do seu círculo familiar e de amigos, mas destaca duas situações pontuais específicas, que não considera preconceito, mas sim ignorância. Em ambas, a questionaram se precisava expor sua condição, como se fosse motivo de vergonha alheia para essas pessoas. Houve também outra situação pontual, em que uma pessoa que estava interessada em sair com Daniela, durante uma conversa em grupo, o assunto sobre sua sorologia surgiu e a pessoa simplesmente saiu da mesa sem dizer uma palavra. “Eu posso pensar que foi por causa disso ou posso pensar que ela só saiu porque queria sair. Eu vou dar o significado que eu quiser e mesmo se realmente a pessoa tenha ficado em choque por eu viver com o vírus, ou não tenha gostado, ainda assim isso fala somente sobre ela.”

Maternidade

Sua relação com a maternidade é de muito amor, parceria e trocas. “Meu filho foi desejado e planejado. Eu não lembro de falar que nasci para ser mãe, mas um relacionamento despertou em mim esse instinto materno. E o Bruno foi desejado, foi planejado e muito amado desde o primeiro momento. Sempre tivemos uma relação muito boa e maravilhosa. O Bruno é muito amoroso, desde sempre foi um menino muito bom e inteligente. Conversávamos sobre diversos assuntos à medida que ele foi crescendo, desde a importância da higiene íntima, de usar preservativo, até os relacionamentos. Sempre enfatizei que tem que tratar as meninas com respeito e gentileza, lembrando de suas irmãs [por parte de pai] e das outras mulheres da família. Ele sempre teve liberdadepara conversar comigo, o que facilitou abordar essas conversas.”

Quando o assunto é maternidade, afirma que raramente recebe dúvidas na sua rede sobre a possibilidade de ter filhos vivendo com HIV, mas diz ter se surpreendido ao perceber que as pessoas confiam em compartilhar suas histórias, especialmente as mulheres com HIV/aids.

De acordo com Daniela, a maioria delas, aproximadamente 98%, mantém sua sorologia em segredo dos parceiros, filhos, familiares e outras pessoas e seu convívio. “Recebo mais mensagens sobre amamentação e as preocupações psicológicas. […] A parte emocional é o que mais impacta! É muito triste ver quantas mulheres se escondem, por causa do preconceito”, lamenta.

(Imagem: Arquivo Pessoal/Reprodução)

“Antes, eu me escondia ao ir à unidade de saúde, usando casacos para não ser reconhecida. Mas em um dia, tudo mudou. O dia da minha liberdade. Ao entrar no CTA, deixei de usar máscara pela primeira vez e percebi que não preciso mais me esconder. A responsabilidade de não ter optado por usar preservativo é minha, não fui forçada ou pressionada, mas por que trazer um peso tão grande e pesado para algo? É muito mais comum a mulher exigir o uso do preservativo do que o homem. Eu usei uma camisinha pela primeira vez no sexo quando já era mãe, aos 23 anos, pois na adolescência eu nem sabia da existência. A informação sobre o assunto era escassa e os pais tinham vergonha de falar sobre isso.”

“Uma frase que me guia é que o fato não pode ser mudado, mas temos o poder de mudar nossa mentalidade e transformar nossas vidas. Precisamos de coragem para enfrentar e liberdade para viver com essa coragem. O diagnóstico não é uma sentença de morte, mas uma oportunidade para uma nova vida. Mesmo para quem chega ao estágio de aids, tem jeito. A escolha é por viver, e não apenas sobreviver com HIV. Agora eu estou vivendo o auge de tudo isso, a minha melhor fase. Se eu não tivesse me tratado lá, desde o início, não estaria vivendo agora este momento tão maravilhoso, vendo a minha nora sendo a melhor mãe do mundo, vendo o meu filho construindo uma família, e eu me sentindo integrada a tudo. Eu dei o primeiro banho no meu neto, ajudei a dar o primeiro banho na minha neta que nasceu há poucos dias… meu neto divide a comida comigo, não existe nenhum medo. Eu sou indetectável. As crianças estão vindo com outra cabeça, outra direção[…]. O maior inimigo é o preconceito e a falta de informação.’’

(Imagem: Arquivo Pessoal/Reprodução)

Daniela compartilha como será seu domingo de Dia das Mães: ‘‘A programação deste domingo será ir à missa cedinho, café da manhã e almoço em família. Curtindo meu filho, nora e netos. À tarde, vou até o centro de tradições gaúchas (CTG) que tem aqui em Sorocaba, ajudar na triagem e organização dos itens que estamos arrecadando para enviar para o povo gaúcho, meu povo amado, que neste momento precisa tanto da nossa ajuda.’’

Vibrante, ela deixa uma mensagem de encorajamento para aquelas mamães que não se sentem prontas ou têm dificuldade de falar sobre o diagnóstico com seus filhos. ‘‘O medo sempre fará parte da nossa vida. Busque usar este medo como fonte de coragem para entender e aceitar a sua sorologia. Depois, com o tempo, ter a liberdade de viver em paz com a decisão de contar ou não, sempre com consciência que a transformação começa e está dentro de si.’’

Kéren Morais (keren@agenciaaids.com.br)

Dica de entrevista

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