Dando continuidade à série de entrevistas sobre envelhecer trans, hoje vamos conhecer Bianca di Capri. O sobrenome, ao contrário do que podemos deduzir, não é por causa da ilha italiana, mas sim porque ela é uma capricorniana.

Com 49 anos, recém completados, Bianca jamais imaginou que envelhecer seria uma experiência tão boa. “Minha expectativa de vida era 35 anos. Antes de chegar aos 35, já lutei muito por direitos, por respeito, para que eu conseguisse ultrapassar essa idade, para que a comunidade consiga ultrapassar essa estatística. A gente está vivenciando um momento político terrível. Mas se eu analisar os fatos ocorridos de 2010 até agora, houve o reflexo da luta que nós tivemos de 2000 a 2009. Nós lutamos por uma década para os benefícios virem anos depois. Então, o processo continua o mesmo. Eu luto hoje para colher amanhã, para atingir um futuro melhor amanhã”, declarou ela. 

Bianca é natural de Paranatama, cidadezinha no interior de Pernambuco. Seus pais se separaram quando tinha quatro anos e ela foi obrigada a ficar com o pai, um homem violento mas extremamente protetor com a família.  Moravam em um sítio, isolados, sem contato com outras pessoas. Ela sempre se sentiu do sexo feminino, dormia de camisola, usava roupas de meninas que a mãe tinha comprado para ela. Aos sete anos de idade, descobriu que era um menino. Acostumada a tomar banho com as duas irmãs – o que era comum – percebeu que seu órgão genital era diferente. 

Questionada pela criança, a madrasta revelou que ela era do sexo masculino e que  tinha que se vestir como homem. “Aquilo foi me causando um desconforto muito grande, nossos corpos foram mudando e minha madrasta começou a comprar roupas masculinas. Ela tentou ser a melhor mãe que ela podia ser, me falou que eu era um menino, mas sempre me acolheu muito. Sabia que eu era uma pessoa trans, mas não sabia como lidar com isso”, relatou.

“Meu pai via que eu estava mais para menina do que para menino e me manteve isolada até os onze anos, sendo educada em casa pela minha madrasta. Até então, eu nunca tinha ouvido meu nome de batismo. Sempre fui chamada de ‘Fi’, que era meu apelido. Foi então que ele achou que eu já estava preparada para me defender sozinha e comecei a frequentar a escola.”

Aos doze anos, foi estuprada por um sobrinho do pai. “Tive medo de contar pra ele, dele ser ainda mais violento e, também não aguentando mais a pressão do bullying na escola, fugi de casa e fui morar com a minha avó, com quem fiquei até os dezessete anos, quando ela faleceu”.

Bianca, então, resolveu realizar a grande meta de sua vida, que era ir para São Paulo morar com a mãe. Deixou Paranatama para trás e nunca mais voltou. Em São Paulo, se sentiu rejeitada pela mãe, por ser um homem muito feminino. 

Seis meses depois, foi morar na rua. Quem a ajudou foi uma mãe de santo, mãe Elza, que a acolheu e a levou para morar com ela.  “Graças a ela, eu consegui me desenvolver, ter o primeiro emprego, tirar minha documentação e me estabilizar como ser humano.” 

A hormonização começou com cerca de vinte anos, já morando sozinha. Ela trabalhava em uma empresa e, na hora do almoço, conheceu uma travesti vendedora de uma loja de calçados. “Eu olhei para ela e disse: nossa! É você quem eu quero ser”. Através dela conheceu os hormônios e, aos 24 anos, conheceu o silicone industrial, pelo qual se apaixonou. Viu nele a possibilidade de ter a silhueta que sempre quis. 

Esse processo durou uns dez anos. A partir de então, já se sentia quase quem queria ser de verdade, mas ainda faltava conseguir ser chamada pelo nome com  o qual se identificava. Os documentos vieram somente há poucos anos. “Foi a partir do nome civil, que eu recuperei minha dignidade. Ele me trouxe autoaceitação, respaldo e respeito. Hoje eu não sou mais questionada: quem é esse senhor? Eu não tenho mais que provar quem eu sou, o que era muito constrangedor.”

De 2001 a 2003, Bianca fez parte da Coordenadoria de Pessoas Trans e Travestis da Associação da Parada Gay de SP e em 2004 ela criou o Grupo Unificado de Travestis e Transexuais (GUTT) de São Paulo, a primeira ONG da cidade voltada para a causa. 

Para manter a saúde em dia, Bianca faz atividade física, principalmente caminhada e musculação, evita exposição solar e tem cuidados com a pele. Tem acompanhamento médico e cuida da saúde mental, que é algo “que estou trabalhando com muito amor, justamente projetando essa questão dos meus sessenta, setenta anos. Eu quero estar muito bem lúcida e mentalmente, até porque minha mente é uma eterna criança. Eu percebi que os fatores da minha vida me levaram a ter muitos quadros depressivos que tive que enfrentar. Quando parei de fazer rua, me tornei uma pessoa mais sedentária e passei a sentir dores e sintomas que a medicina não encontrava resposta. Eu percebi que a resposta estava na atividade física, o que mudou muito a minha questão de saúde. Meu processo sempre é saúde física, mental e espiritual”, explica. 

“Envelhecer como pessoa trans para mim é um privilégio, principalmente quando esse privilégio vem de uma conspiração do universo para te preservar dos perigos, dos riscos dessa trajetória, porque a minha vida tem passagens de muitos riscos de morte. A morte, hoje, eu considero minha melhor amiga, porque na prostituição, por exemplo, foi me enviada a morte por diversas vezes: a morte por parte da sociedade, a morte por parte da polícia, dos clientes. Eu descobri, depois de parar de fazer esquina, fazendo uma auto análise da minha vida, que a morte se tornou minha amiga. A vida pra mim é prioridade e ela continua presente, sou muito grata a isso. Eu não irei antes de concluir o propósito pelo qual eu vim pra cá, eu tenho certeza disso hoje.”

 


Mauricio Barreira

 

Dica de Entrevista

 

E-mail: biancadicapri@gmail.com