Apesar de hoje em dia haver uma maior compreensão em relação ao tema, crianças e adolescentes com variação de gênero ainda são alvos de bullying, rejeição, preconceito, violência física, verbal e ostracismo social que afetam sobremaneira seu bem-estar psicológico e muitas vezes causam ansiedade e depressão. Pais e familiares também são criticados ou rejeitados por isso.

Na maioria dos nascimentos, existe uma conformidade entre o sexo biológico e o gênero. Entretanto, em alguns indivíduos, existe uma incongruência. E não sou eu quem diz isso: segundo a Organização Mundial de Saúde, a identidade de gênero se refere a uma experiência interna, profunda e pessoal de cada um, podendo ou não corresponder ao sexo do nascimento.

É impossível prever quais crianças com não conformidade irão persistir com essa questão na adolescência e vida adulta. Quando surge a suspeita na idade pré-escolar, estudos longitudinais mostram que 85% dessas crianças voltarão a ficar satisfeitas com seu sexo biológico, embora em algumas exista uma tendência à orientação homossexual. Quando a incongruência de gênero se mantém até a adolescência, é grande a probabilidade dela se manter assim quando adulta.

Uma criança de 17 a 21 meses de vida já tem a habilidade de se identificar como menino ou menina. Entre os dois e três anos, quando começam as brincadeiras ou comentários da família sobre as características e preferências de cada um, a identidade de gênero entra em cena. E por volta dos sete anos a criança tem plena consciência do que é, como quer se vestir e como quer seu cabelo, por exemplo.

A Sociedade Brasileira de Pediatria, da qual faço parte, recomenda que aqueles que se identifiquem como transgênero, tenham acesso a cuidados de saúde abrangentes, adequados ao desenvolvimento. Com apoio de um aparato clínico seguro. Está lá, no manual da entidade: “em alguns indivíduos existe uma incongruência entre o sexo biológico e a identidade de gênero. O estresse, sofrimento e desconforto causados por essa discrepância é chamado de disforia de gênero.”

E apesar do embasamento médico-científico, a Assembleia Legislativa de São Paulo formou uma CPI com o objetivo de investigar a utilização de hormônios em crianças e adolescentes com questões de gênero que são atendidas no Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo, um centro de excelência e referência no país. Para mim, nada mais é do que uma clara interferência da ideologia política sobre a ciência. Ou fanatismo religioso.

O diagnóstico de disforia de gênero é delicado, e deve ser realizado por uma equipe interdisciplinar formada por vários especialistas: pediatra, endocrinologista, psicólogo, psiquiatra, assistente social, todos em contato próximo com a criança e sua família, acompanhando o desenvolvimento ao passar dos anos. E é isso que acontece no HC. O SUS conta com outros quatro serviços habilitados pelo Ministério da Saúde no processo transexualizador, que realizam atendimento ambulatorial e hospitalar no Rio, em Goiânia, Recife e Porto Alegre.

Não podemos regredir em direitos que já estão estabelecidos no Brasil, uma vez que a regulamentação do Conselho Federal de Medicina, para a população adulta com disforia de gênero, é de 1997. O Processo Transexualizador realizado pelo SUS garante o atendimento integral de saúde a pessoas trans. Em 2020 foi publicada uma nova resolução que dispõe sobre o cuidado específico à pessoa com incongruência de gênero ou transgênero.

O leitor gostando ou não, as crianças com disforia de gênero existem e não são pervertidas. São apenas diferentes e precisam ser entendidas como tal. Elas já sofrem o suficiente e não precisamos impor mais sofrimento. Vamos acolhê-las como sociedade e como instituições. Serviços como o do Hospital das Clínicas são poucos no Brasil e representam uma ilha de salvação para essas pessoas. Nós, como sociedade, precisamos estar atentos ao fanatismo e obscurantismo de alguns de nossos legisladores e governantes, para que suas agendas pessoais não se sobreponham à ciência.

Fonte: O Globo