Na tarde deste domingo (19), a Agência Aids apresentou a roda de conversa “Política LGBTQIA+ no Brasil: temos avanços e muitos desafios”. O bate-papo faz parte das atrações da 19ª edição do Camarote Solidário.

A conversa foi mediado pela jornalista Roseli Tardelli, diretora desta Agência, e teve a participação dos ativistas Toni Reis, da Aliança Nacional LGBTI+, Maitê Schneider, do Transempregos, e Heloisa Gama Alves, advogada e presidente da Comissão da Diversidade Sexual e de Gênero da OAB/SP.

Convidados “que tiveram a coragem de sair do armário e fazer com que outras pessoas pudessem ter, através desse exemplo, condições e força para serem o que são”, disse a jornalista ao apresentá-los.

Saída do armário

Heloísa observou que sua saída do armário foi tardia, aos 28 anos, quando teve sua primeira experiência com uma mulher. “Eu não tinha essa percepção. Eu lembro que no dia seguinte eu me perguntava por que não tive essa certeza da minha orientação sexual antes, não só da sexualidade, mas da questão afetiva também. Até então, eu tinha me relacionado com quatro rapazes e não tinha sido feliz nem sexual nem afetivamente. A partir daí, eu tive certeza de que era uma mulher lésbica. E desde então, estou completamente fora do armário, sem esconder, em todos os lugares de trabalho por onde passei, entre os familiares. Quis assumir logo de cara, com liberdade, e quem não gostasse, que saísse da minha vida, simples assim.” A advogada confessa que se decepcionou um pouco com a mãe, que era uma mulher moderna, independente e teve dificuldades para aceitar. Ao contrário, o pai, com quem Heloísa tinha mais alguma dificuldade de relacionamento, foi fantástico. Em uma das duas vezes que ela foi questionada pela mãe sobre o assunto, o pai respondeu: “Eu criei meus filhos para serem felizes, não interessa como”.

Logo cedo, Maite já viu que ser parte dessa tal diversidade era uma questão que ia percorrer a vida inteira. Ela nasceu no começo dos anos 70, em Curitiba, Paraná e começou a estudar em colégio franciscano aos seis anos. “Meus amigos e amigas, o que eu pensei que eles fossem, me colocaram no centro de uma rodinha durante o recreio e começaram a bater palmas e me chamar de mariquinha. Não tinha internet na minha época, eu não tinha como buscar a informação para saber o que era e achei que fosse um título, algo superbom. Quando meu pai foi buscar a mim e aos meus irmãos no colégio, eu contei toda animada o que tinha acontecido e ele me disse que aquilo não era bom, que eu tinha sofrido bullying. Naquele momento, eu soube que ser diferente era algo que iria estar presente em toda minha vida. Eu tentei suicídio pela primeira vez aos 14 anos, a segunda com quase 16, por não me sentir parte dessa nossa enorme sigla que não para de crescer. E quanto mais ela cresce eu vejo que as pessoas estão se encontrando e não vão para o desespero como eu fui.  A gente sabe que há um grande número de suicídios entre pessoas LGBT, principalmente entre as pessoas trans.” Na segunda tentativa de suicídio, o pai dela a levou a um psicólogo, não para tentar mudá-la, mas para compreender, porque não havia literatura nem informação sobre o assunto.  Depois de algum tempo, esse profissional a encaminhou para outro médico, que já fazia cirurgias de pessoas intersexo e, após algumas consultas, a identificou como uma pessoa trans. “Foi muito incrível, porque ele me disse que uma em cada cem pessoas nascia assim e eu pensei que em Curitiba deveria ter umas quinze pessoas assim. Aí eu saía na rua e fica me perguntando quem era e quem não era, só por me sentir parte de um grupo.” Ela, então, foi se reconhecendo como uma pessoa trans, mas muito privilegiada por ser branca, de classe média, por conseguir estudar e “comecei as minhas batalhas para que esses privilégios atingissem mais pessoas e a gente construísse um mundo para todos.”

Toni Reis contou que não se assumiu, que foi comunicado na escola, aos 14 anos, que era “viado, maricas e bicha”. “Foi muito complicado para mim, porque eu sou cristão, eu vim de uma cultura cristã e isso em uma cidade do interior onde o padre, o prefeito e o delegado mandam, a cultura é extremamente machista”. Ele procurou a mãe pedindo ajuda e comunicou o que estavam dizendo dele. “Mãe, eu sou doente, eu sou pecador, eu sou fora da norma e não quero ser isso. A senhora me ajuda?” Ela o abraçou, chorou e disse que ele sempre seria seu filho e que o amava. Foi conversar com uma professora que falou a ela que aquilo talvez fosse uma doença. Então, ela levou Toni a um hospital em Pato Branco e pediu para o médico que curasse seu filho. “O médico me examinou e disse que eu não tinha absoluta nada, que talvez eu fosse sofrer muita discriminação onde eu estava. Ele me aconselhou a ir para um local maior, estudar muito, ser alguém e lutar. Comuniquei a minha mãe que eu tinha sido desenganado, que não tinha cura. A família toda me acolheu, procurou me ajudar e eu fui para a igreja. Lá o padre disse que era uma doença e um pecado. Mandou-me fazer uma novena para Nossa Senhora do Perpétuo Socorro e se eu tivesse uma recaída, tinha que recomeçar. Essa novena virou uma quarentena, porque eu via o Tony Ramos naquela época, que era muito bonito, e eu tinha recaídas. Fiquei com feridas nos meus joelhos de tanto rezar e pedir para não ter esses pensamentos ‘abomináveis’.” Depois de passar por várias religiões, pensamentos de suicídio, simpatias, nada deu certo. Foi morar em Curitiba e sua cabeça abriu. Ainda se sentia mal e leu muito. Descobriu que a discriminação era cultural e resolveu mudar de cultura.  Foi para a Espanha, adotou o nome de Toni Reis e prometeu nunca mais deixar ninguém dizer a ele o que deveria ser. Morou por anos em vários países da Europa e, em Londres, conheceu seu marido David, com quem vive há 32 anos.

Avanços e retrocessos

Roseli discorreu sobre as conquistas do movimento LGBTQIA+, tais como a proibição da cura gay e a criminalização da homofobia, mas relatou que pelo menos 300 pessoas dessa população tiveram mortes violentas em 2021 e quis saber como reverter essa violência ainda muito presente.

Heloisa Alves observou que o movimento LGBTQIA+ avançou muito, mas que “o copo não está nem cheio nem vazio. Acho que a sociedade hoje não só aceita respeita como aceita, mas nós estamos no Brasil em um momento em que a autoridade máxima do Brasil é claramente LGBTfóbica. Tivemos muitas conquistas no poder judiciário, no poder executivo, mas não temos conseguido vencer no poder legislativo. Nós temos tido muita dificuldade em aprovar leis que garantam os nossos direitos. Os nossos direitos estão na Constituição. Todas as conquistas que tivemos até agora, o Supremo Tribunal Federal, como guardião da Constituição, não fez nada mais que garantir os direitos que lá estão, como a não discriminação, o princípio da dignidade humana, só para citar esses dois”, explicou a advogada. “Até hoje, o poder legislativo tenta retirar os direitos que nós aprovamos no poder judiciário e não aprova leis que nos protejam efetivamente. O casamento é uma decisão do STF de 2011 e ainda não foi regularizado no Código Civil pelo Congresso Nacional, por exemplo. Então, acho que o grande desafio que nós temos é furar esse sistema legislativo refratário aos nossos direitos. E isso se faz como? Com mais representatividade política. Este é um ano de eleição e mais do que nunca temos que prestar atenção em quem vamos apoiar, em quem vamos votar.”

Roseli comentou que, hoje, São Paulo tem uma das maiores e mais respeitadas paradas gays do mundo e questionou como reverter esse número em representatividade, em voto e em não-agressão.

Toni pontuou que os ativistas recorreram ao STF somente porque o Congresso Nacional foi omisso e que ausência de leis não quer dizer ausência de direitos. “Nós precisamos aprovar o estatuto das famílias e também o estatuto da diversidade, que é positivar – uma linguagem do meio jurídico – ou seja, termos em leis as decisões já aprovadas no Supremo. Para isso, precisamos que todas as pessoas se conscientizem que nós temos que votar em pessoas LGBTQIA+ e nós vamos ter uma gama muito grande de pessoas maravilhosas. Temos hoje em torno de 30% dos parlamentares lá na Câmara e espero que a gente consiga eleger 60% de pessoas aliadas, incluindo as pessoas LGBTQIA+. Eu estou muito otimista.”

Maite também se declarou otimista e esperançosa em relação ao futuro, mas reiterou que é preciso passar da aceitação para o respeito que tem que ser obrigatório e compulsório. “Sou uma pessoa otimista, porque isso é o que nos move, quem trabalha com militância nas variadas frentes tem que acreditar sim nessa visão de que é possível melhorar e que a gente tem força para fazer essa construção pró-assertiva, mas ao mesmo a gente tem que ter consciência de que é um trabalho difícil, que ao mesmo tempo que a gente vai para a frente, há uma força contrária no mesmo sentido. A gente tem que ter essa consciência, senão a gente relaxa. Não dá para a gente deixar acontecer naturalmente. Otimismo sim, mas com cautela, com observação e nunca baixando a retaguarda porque vem de tudo que é lado, ainda mais com liberação de armas, com esse caminho que as pessoas estão tendo, voltando a uma questão atávica, quase animalesca, de uma falta de consciência, de uma falta de diálogo, para resolver tudo na bala. Isso a gente não pode deixar voltar porque a gente já foi para um lugar que a gente não aceita mais isso”, afirmou.

“Eu acredito muito no trabalho que a gente tem de educação. Eu sigo muito o nosso Paulo Freire que diz que educação não muda o mundo, muda as pessoas e as pessoas mudam o mundo. Então, temos que continuar sim com o nosso trabalho de mostrar que as pessoas têm que ser do jeito que são e que a diversidade é a nossa maior igualdade e que o respeito deve ser o nosso maior princípio, nossa maior missão e nosso maior valor”, prosseguiu Maite.

Armário nunca mais

Por que armário nunca mais? perguntou Roseli.

Heloisa Gama Alves

“Porque o direito de ser é inalienável, nós temos direito de ser o que nós quisermos. As pessoas têm que nos respeitar pelo que nós somos. Nossa Constituição garante que tenhamos nossos direitos respeitados. Nós não queremos privilégios, queremos apenas que nossos direitos sejam respeitados. Que nós não morramos porque amamos outras pessoas do mesmo sexo ou não seguimos a cisgeneridade”.

Maite Schneider

“Porque é uma agonia esse armário, principalmente o meu quando vim pra São Paulo, que era pequeno. Todo armário é pequeno. Até roupa sofre dentro do armário, ninguém gosta de ficar com cheiro de naftalina. O ser humano nasceu para não ter limites. Limites são bons no cartão de crédito quando a gente não tem dinheiro. Coco Chanel dizia que a gente pode ser duas coisas nessa vida: a primeira é ser quem você é e a segunda ser quem você quiser.  E a Djanira Silva diz que nessa vida não é o que a gente junta, mas o que a gente espalha. O armário não nos permite espalhar, ele mantém a gente engessado. Então, vamos abrir esse armário e nos expandir. Vamos ser horizontes, vamos brilhar e vamos multiplicar nossos saberes, nossos amores. Saiam dos armários, venham para a frente e vocês vão ver que vão respirar até melhor.”

Toni Reis

“O armário não tem luz e você tem que vir para a luz. Escancare as portas do armário, quebre as dobradiças porque o ar fresco da vida é muito legal. O filósofo Aristóteles disse que a finalidade da vida é ser feliz. Pode ser uma boa relação sexual, um bom copo de vinho ou uma boa pizza. Nós também temos que ter a felicidade dos nossos amigos, da nossa família e também a felicidade acadêmica, intelectual. Você dentro do armário, você não vai conseguir se relacionar com as pessoas. Quando a gente não é por inteiro, a gente vai ter amizades pela metade, relacionamentos pela metade. Então, seja gay, lésbica, pessoa não binária, trans, seja o que você quiser. Inclusive, essas letrinhas já estou querendo eliminar, porque nós somos muitos. Os heteros também precisam se libertar e ter uma sexualidade mais tranquila. Não é a igreja, não é a família, não é a política, não é a ciência que vai dizer o que vai ser bom para você. Desde que você respeite o próximo, tenha consentimento, você deve ser feliz.”

Esta edição do evento tem o apoio do SESC e Senac São Paulo, das farmacêuticas GSK ViiV Healthcare e Janssen e da Galeria 2001. Contamos também com uma parceria institucional da TV Cultura, que disponibilizou pílulas e informações sobre HIV e prevenção durante a programação convidando o público a doar alimentos e do Portal IG, que está transmitindo o evento na íntegra.

Saiba como doar a cesta básica

Você pode doar via QR Code, é só apontar a câmera do seu celular para a imagem e verificar o código com o próprio aparelho smartphone. O link é redirecionado a uma página específica de doação, onde você pode escolher quantas cestas doar.

Você também poderá doar clicando aqui.

 

Redação Agência de Notícias da Aids

 

Dica de Entrevista:

Heloisa Gama Alves

E-mail: alveshelo5@gmail.com

Maite Schneider

E-mail: transempregosbrasil@gmail.com

Toni Reis

E-mail: tonidavid@avalon.sul.com.br