Corpos dissidentes têm sido frequentemente excluídos das conversas sobre futuro, porém na Ball Vera Verão isso é diferente! Celebrando corpos latinos, LGBTQIAPN+, pretos, periféricos, indígenas, não-binários e HIV+, aconteceu no último sábado (30), em São Paulo, a sétima edição da Ball Vera Verão.

A maior ball da América Latina chegou em 2024 com o tema ‘Vera Verso’, falando sobre o metaverso, e mais uma vez homenageando Jorge Lafond, artista, transformista e ícone da televisão brasileira, que foi pioneiro em abrir as portas para pessoas travestis e transexuais ocuparem as telas e os palcos da cultura brasileira.

Esta é uma realização da House of Zion e Coletivo AMEM, com apoio do UNAIDS – Programa das Nações Unidas Sobre HIV/Aids.

Além de um momento de celebração da diversidade e da cultura queer, cultura essa que desafia as normas de gênero, também foi uma oportunidade para promover discussões importantes sobre saúde. A conscientização sobre a prevenção do HIV/aids foi um tema abordado durante todo a noite, com informações sobre prevenção, tratamento e inclusão das maiorias minorizadas nos espaços de promoção à saúde, pensando em um futuro livre da aids.

Misturando muita música, dança, beleza, moda, arte, criatividade, ativismo e beijo na boca, a festa abriu com um bate-papo sobre sexo seguro e direito ao acesso à saúde, com o painel ‘Promoção de Vidhas na Comunidade Ballroom’. Para desbravar a temática, a conversa contou com Allan Gomes, sanitarista, pesquisador, redutor de danos e coordenador do Projeto Respire, da ONG É de Lei; Eduardo de Oliveira, psicólogo e coordenador do projeto de pesquisa ‘PrEP 1519’; e representando o UNAIDS – Programa das Nações Unidas Sobre HIV/Aids, Gabriel Borba, consultor de igualdade legislativa e racial. Flip Couto, produtor-executivo da Ball Vera Verso, foi quem comandou a mediação da conversa.

PrEP

O psicólogo foi o primeiro a falar. Eduardo de Oliveira, explicou que o projeto ‘PrEP 1519’ é um projeto de campo da Faculdade de Medicina da USP, de Saúde Coletiva, que acontece desde 2019, com objetivo produzir dados para entender em quem a profilaxia tem chegado e democratizar seu acesso. Ele esclareceu para quem talvez nunca tenha ouvido a palavra PrEP antes, que essa é uma medicação para prevenir o vírus da aids. “A PrEP é um método de prevenção disponível no Sistema Único de Saúde (SUS) para pessoas acima de 15 anos, em duas modalidades: PREP diária, que a pessoa toma todos os dias, e a PrEP sob demanda, com uso de quatro comprimidos”.

De acordo com Eduardo, muitas pessoas ainda têm uma concepção antiga sobre como se proteger do HIV, como se houvesse apenas uma forma de prevenção. No entanto, reforçou a gama de possibilidades que existe hoje, a exemplo da própria PrEP, da camisinha interna e externa e da testagem regular.

O pesquisador dividiu que na primeira fase do estudo, as atividades eram voltadas para homens gays, bissexuais e cisgêneros, e mulheres trans e travestis de 15 a 19 anos. Ao longo da pesquisa, perceberam que a população que mais acessava a PrEP por meio do projeto eram homens gays cisgêneros de 18 a 19 anos. Por isso, na fase 2, estão ampliando o público priorizando as populações mais vulneráveis que identificaram durante o estudo (adolescentes de 15 a 17 anos, homens gays, bissexuais, cisgêneros, mulheres trans, homens trans e pessoas não binárias de 15 a 19 anos). “Nós temos atuado e percebido que é muito difícil para determinadas populações chegarem ao serviço de saúde e que não dá mais para esperar que essas pessoas cheguem ao serviço de saúde, porque elas não vão chegar. Nós precisamos ir até elas!”.

Redução de Danos

Allan Gomes, aproveitou o gancho para falar das ações e do propósito que o Projeto Respire, da ONG É de Lei, fomenta nos contextos de festa, sob o prisma das estratégias em RD (Redução de Danos). “A Redução de Danos sempre foi vista e pensada por pessoas brancas, cisgêneras, heterossexuais… que não passaram por nenhum processo de opressão. E hoje estamos [lutando para que] a política de redução de danos seja periférica, preta, trans… porque, afinal, as pessoas que se infectam pelo HIV e por outras ISTs, são as mesmas pessoas afetadas pela política de drogas. 

O sanitarista destacou que nos primeiros anos da epidemia de aids, especialmente devido ao número de pessoas que se infectavam pelo HIV por meio do uso de drogas injetáveis, o Brasil foi pioneiro em sua resposta. Nesse sentido, mencionou a importância de retomar o olhar que foi deixado para trás. “Redução de danos é política pública e é direito!”.

Representando o UNAIDS, Gabriel Borba, seguindo a mesma linha, complementou que a organização reconhece que estas são questões fundamentais a serem debatidas, destacando o fato de que, enquanto a incidência da infecção pelo HIV vem diminuindo entre populações brancas, está aumentando proporcionalmente entre populações negras. A partir dessa constatação, o especialista em racialidade reafirmou o compromisso que o UNAIDS tem de ser ancorar na pauta do HIV sempre cruzando com a questão étnico-racial, sem deixar de considerar também fatores de gênero e orientação sexual, e a partir disso, pensar suas ações e planos de enfrentamento para acabar com a aids enquanto problema de saúde pública nacional e global.

Um exemplo citado por Gabriel foi um projeto piloto que, em Brasília, discutiu a prevenção do HIV dentro das comunidades quilombolas. “Essa é uma grande iniciativa que pode virar uma política pública mais à frente. E as Nações Unidas têm esse objetivo de fazer projetos, implementar projetos, para que se tornem política de Estado. Essa foi uma iniciativa muito importante lá na Ilha do Marajó, com mais de 45 mulheres pretas envolvidas para discutir a questão do HIV/aids entre mulheres as mulheres pretas quilombolas, sempre respeitando o território.”

Gabriel também mencionou a importância de dialogar com as comunidades indígenas e ribeirinhas para entender suas necessidades e desafios que temos ainda de avançar em relação ao HIV e que há um grande desafio em relação à falta de dados sobre a prevalência do HIV nessas populações, devido a diversos fatores, como o impacto histórico da epidemia nessas comunidades.

Em entrevista à equipe da Agência Aids que esteve presente na Ball Vera Verão 2024, Allan Gomes, coordenador do projeto Respire, estendeu o papo. Allan disse quão é importante marcar presença em todo o circuito da Ball para levar a palavra da redução de danos e explicou que a ideia do time, no local, é fornecer informações sobre o uso de substâncias por meio do diálogo, oferecendo materiais informativos, como folders, e distribuindo o kit sniff, destinado ao uso de drogas aspiradas, como cocaína, metanfetamina e ketamina. Além disso, conversam individualmente com cada pessoa que os procuram, oferecendo orientações e tirando dúvidas sobre redução de danos e uso de substâncias.

“A gente sabe que a guerra às drogas, o proibicionismo acaba afastando as pessoas do cuidado. Então, aqui a conversa é aberta, segura, acolhedora, sem preconceitos sobre uso de substâncias e também de práticas sexuais que possam aparecer derivado a esse uso de cocaína, metanfetamina ou com qualquer outra substância.”

A Agência Aids também falou com quem estava aproveitando a Ball para saber como avalia a experiência. Israel Alves, de São Paulo, esteve pela primeira vez em uma ball mainstream desta dimensão e compartilhou: “Não sou membro da comunidade ballroom, sou das danças urbanas, e está tudo muito lindo, estou impactado, tanto com as categorias, quanto com a possibilidade de testagem para HIV. Eu como membro da comunidade LGBTQIA+, me sinto muito pertencente a esse espaço, muito acolhido, e eu acho que essa é a melhor palavra: acolhimento; de se sentir confortável, de olhar para o lado e ver testagens, preservativos, tudo o que nos impulsiona a estar vivos, que é o que lá fora não acontece. Então estou muito feliz e desejo muita prosperidade, que isso só se perpetue dentro da comunidade Ballroom e para além dela.”

Testagem

Enquanto acontecia a batalha de voguing se acirrava nas 16 categorias e o público vibrava, do lado de fora, quem passasse pelo local podia se testar.

Márcia Marci, integra a equipe de prevenção da Coordenadoria de IST/Aids de São Paulo e compartilhou que a articulação com o coletivo AMEM foi feita através de Flip Couto, que os convidou para dar continuidade e combinar as estratégias de prevenção na e para a comunidade Ballroom. “Anteriormente, fizemos alguns encontros para pensar a melhor abordagem com o público e observamos que o público da ball, em sua maioria, já conhece os métodos de prevenção, a PEP, a PreP, já se testa regularmente… além disso, é um público muito tranquilo de abordar.”

A enfermeira Eliane Sala, também do setor de prevenção da Coordenadoria, especificou que os testes ofertados na ocasião para detectar HIV e/ou Sífilis, além da PrEP e PEP que poderiam ser iniciadas, da dispensação de autotestes, preservativos internos, externos e gel-lubrificante.

Eliane garantiu que os resultados dos testes são fornecidos dentro da unidade móvel de forma absolutamente sigilosa. Ela também ressaltou que, até o momento, não houve nenhum resultado reagente para as infecções. “A galera que está se testando realmente são pessoas que geralmente já realizaram testes antes, já estão bem antenadas. Mas estar aqui foi muito bom para a gente conhecer o espaço, conhecer o local. Foi a primeira vez nesta região e valeu muito a pena!”.

Cristina Miranda, é de São Paulo, e dividiu que foi primeira vez na vida que se testou para alguma IST. Ela aprovou a experiência. “Gostei muito, foi rapidinho, em meia hora já saiu o resultado. O pessoal me tratou muito bem e educadamente. Fizeram um questionário antes perguntando algumas coisinhas práticas, em seguida já deram uma picadinha no meu dedo que eu nem senti. Eles esclarecem muito bem qualquer dúvida que a gente tenha. Comigo me deixaram muito à vontade. No momento é só você e a pessoa [responsável pela coleta].”

“Seria ótimo se em todos os eventos, todas as festas, tivesse algo assim. Muitas vezes a gente foge, com medo de saber a realidade, mas a gente tem que se cuidar.”

Cristiana acredita que essa é uma oportunidade de conscientizar, principalmente, os mais jovens, público que tem sofrido aumento expressivo no número de novos casos de HIV e outras Infecções Sexualmente Transmissíveis. Por isso, finalizou deixando um recado: “Galera, se cuidem, se previnam e façam teste que é rapidinho e você não vai pagar nada por isso!”.

Kéren Morais (keren@agenciaaids.com.br)

Dica de entrevista

Instagram: @ballveraverao

E-mail: houseofzion@gmail

Instagram: @coletivoamem