No começo da semana, o Sesc Carmo foi palco de um importante bate-papo que abordou as intersecções entre racismo e HIV/aids, focando na realidade da população preta. O encontro reuniu o psicólogo Lírio Nascimento, a artista plástica Micaela Cyrino e o jornalista e roteirista Alberto Pereira Jr., que compartilharam reflexões sobre o impacto da desigualdade racial na subjetividade das pessoas negras e o acesso ao tratamento para o HIV.

Embora tenham histórias de vida e experiências com o HIV bastante diferentes, eles compartilham muito em comum. Lírio faz parte da geração que viveu a transmissão vertical do vírus. Micaela Cyrino, que também nasceu com HIV, cresceu em uma casa de acolhida para crianças afetadas, onde teve a oportunidade de estudar, fazer amigos, descobrir sua identidade e desenvolver sua paixão pela arte desde cedo. Alberto Pereira Jr., por sua vez, já era comunicador quando recebeu o diagnóstico. Todos eles utilizam suas vivências para abordar temas como afeto, cura da alma, acolhimento e aquilombamento, promovendo a vida e combatendo o estigma.

Lírio Nascimento abriu a discussão com uma análise profunda sobre como o racismo, tanto em suas dimensões sociais quanto psíquicas, afeta de forma distinta as experiências de pessoas pretas e brancas. Ele ressaltou que a branquitude oferece um lugar de conforto, enquanto as pessoas negras enfrentam desafios constantes para resistir e sobreviver em uma sociedade marcada pela desigualdade. “Estou interessado em pensar na imersão da branquitude, nesse conforto que ela traz”, afirmou o psicólogo, provocando uma reflexão sobre a necessidade de reconhecer e confrontar esses privilégios.

Lírio destacou ainda a relevância de autores e autoras negros brasileiros que refletem sobre o racismo na psiquiatria e nas práticas de saúde mental. Ele enfatizou que, embora seja vital discutir esses temas, essa responsabilidade não deve recair unicamente sobre as pessoas negras, já profundamente impactadas pelo racismo. O psicólogo também abordou a antiga lógica de embranquecimento que permeou a história do Brasil, observando como suas consequências ainda se manifestam, mesmo que não estejam mais institucionalizadas.

Afetos e corpo negro

A conversa também abordou a importância da responsabilidade social em relação à pauta do HIV/aids e como os afetos desempenham um papel crucial na luta pela liberdade do corpo negro.

Micaela Cyrino trouxe à tona a ideia de que amor, arte e afetos são ferramentas essenciais de resistência. “Precisamos nos preocupar com os afetos e observar o que está sendo feito ao nosso redor, de nós para nós mesmos”, afirmou, sugerindo que o foco deve estar em fortalecer a comunidade negra, em vez de educar os brancos sobre verdades rígidas. Ela também ressaltou a importância do acesso à informação sobre HIV/aids, destacando a desigualdade no acesso aos cuidados, especialmente nas periferias. “Embora o Brasil seja uma referência no tratamento, a realidade é muito diferente fora dos grandes centros.‘Tudo é muito bom em São Paulo, mas o Brasil não é São Paulo. Inclusive, mesmo dentro de São Paulo há igualdade nesse acesso’’, frisou.

Cenário epidemiológico

As desigualdades e o racismo exercem um impacto desproporcional sobre as pessoas pretas, afetando sua resposta ao HIV e à aids.

Dados oficiais da segunda edição do Boletim Epidemiológico Saúde da População Negra, do Ministério da Saúde, revelam que as novas infecções por HIV e a evolução para a aids atingem de forma mais severa a população negra.

Em 2021, entre os casos de aids em menores de 14 anos, a proporção de pessoas negras superou 70% (6,3% de pessoas pretas e 64,9% de pardas). Para jovens de 15 a 29 anos, essa proporção é de 63,7% (13,2% de pretos e 50,5% de pardos). Na última década, as mortes em decorrência da aids aumentaram em 7,9%, passando de 52,6% em 2011 para 60,5% em 2021.

Quando o racismo se entrelaça com a questão de gênero, nota-se que mulheres negras e pardas estão entre as mais vulneráveis. O número de casos de HIV entre gestantes pretas e pardas cresceu de 62,4% em 2011 para 67,7% em 2021. Além disso, mulheres e jovens de 15 a 29 anos representaram 69,6% dessas notificações.

Voz nas redes sociais 

Alberto Pereira Jr. completou a discussão ao abordar a pressão de ser uma voz influente nas redes sociais e seus impactos na saúde mental da população negra. ‘‘Não acho que essa nova profissão de ‘influenciador’ seja realmente uma profissão, pois a influência faz parte da natureza humana’’, ponderou o jornalista.

Alberto destacou ainda a importância de não se engajar em todos os temas sem qualquer critério, uma prática que ele acredita ser prejudicial. E levantou a discussão sobre como a sociedade contemporânea, alimentada por algoritmos, se mantém em um estado constante de alerta, muitas vezes guiada pelo ódio nas redes sociais, somada, inclusive, à sorofobia. ‘‘A gente precisa fazer uma reflexão importante: como estamos alimentando essa sociedade ‘desperta’?’’, finalizou. 

Kéren Morais (keren@agenciaaids.com.br)

Dica de entrevista

Alberto Pereira Jr.

@albertopereirajr

Micaela Cyrino

@micaelacyrino 

Lírio Nascimento

@psciani