Conceito, ainda é obscurecido por mitos e mal-entendidos, está na base da construção de relações saudáveis
Celebrado dois dias antes do Dia do Sexo – que, criado em 2008 por uma fabricante de preservativos, movimenta o mercado erótico no país, apesar de não constar no calendário oficial no Brasil –, o Dia Mundial para a Saúde Sexual (World Sexual Health Day – WSHD), embora menos popular, tem objetivos, digamos, mais nobres. A data foi instituída em 2010 pela Associação Mundial para a Saúde Sexual para promover maior conscientização social sobre o assunto em todo o mundo, de forma que, a cada ano, uma temática específica seja abordada na campanha. Em 2023, a proposta é a promoção de um amplo debate sobre o conceito de consentimento aplicado ao sexo.
O sexo, afinal, é uma forma de expressar afeto, prazer e intimidade, mas também envolve responsabilidade, respeito e cuidado. Daí que, para uma relação sexual ser satisfatória e segura, é preciso haver consentimento entre as pessoas envolvidas, ou seja, é necessário existir um acordo sobre o que fazer, como fazer, onde fazer e quando fazer. Mas como comunicar nossas escolhas e preferências de forma clara e efetiva, sem, ao mesmo tempo, fazer das trocas eróticas algo excessivamente burocrático e protocolar? E por que ainda se faz tão necessário debater um conceito que, em um primeiro momento, pode parecer já estabelecido?
Ferramenta contra a violência sexual
Na avaliação do urologista Walter Fonseca, graduado em sexualidade humana, esclarecer alguns pontos sobre esse tema é fundamental, pois se trata de algo diretamente relacionado à saúde e ao bem-estar das pessoas. “Consentimento sexual refere-se à concordância voluntária, informada e entusiástica entre as partes envolvidas para participar de uma atividade sexual. É um elemento essencial na interação sexual saudável e respeitosa, pois garante que todas as partes estejam confortáveis e em acordo com a atividade, que pode ser retirado a qualquer momento durante a relação”, define, alertando que a falta dele pode levar a traumas físicos e psicológicos – “portanto, a compreensão e prática do consentimento são fundamentais para evitar as situações de violência sexual”.
A psicóloga e sexóloga Enylda Motta, coautora, ao lado de Fonseca, do e-book “Consentimento: Muito Além da Permissão”, lançado hoje, faz considerações semelhantes. Para ela, o ato de consentir é o caminho para uma relação sexual saudável, uma vez que limites, desejos e vontades já foram preestabelecidos, mas lembrando sempre que o consentimento pode ser cancelado ou renovado a qualquer tempo. “O principal elemento é o diálogo, falar sobre, expor receios, medos, desejos, fetiches, conversar sobre limite e regras e lembrar sempre: não é não!”, crava, asseverando que dizer “sim” para em um momento não vale para outros encontros – “ou seja, o consentimento não é renovável automaticamente”.
Os dois estudiosos da sexualidade humana concordam que o consentimento pode variar conforme o contexto, a cultura e a identidade das pessoas envolvidas. Eles lembram que cada cultura tem a sua forma de ver e fazer o sexo. “Além disso, o entendimento do conceito pode variar com base na idade, educação, experiências passadas e outros fatores individuais”, reconhece Fonseca, mas ele pondera: “Tais particularidades nunca devem ser confundidas com o não consentimento. Daí a importância da clareza das relações”.
Nesse sentido, Enylda cita alguns mitos que podem atrapalhar a compreensão se aquela relação sexual é ou não consensual: “Achar que não se deve conversar sobre o sexo, mulheres que fazem sexo para agradar aos maridos (sim, isso pode ser considerado uma violência), homens que também sofrem violências e se calam (esbarramos no machismo). Outro ponto importante é se a pessoa mudar de ideia após ter dado o consentimento, que pode, sim, ser cancelado esse acordo”, aponta. Fonseca complementa citando outros tantos mal-entendidos que podem obscurecer o entendimento do consentimento, como as ideias de que “quem cala consente”, que “roupas provocantes indicam consentimento”, que “o homem sempre quer” ou que, “se a pessoa não resistiu fisicamente, então ela concordou”.
O médico pós-graduado em sexualidade humana sublinha um ponto que precisa ser especialmente destacado nesse debate: a relação entre álcool e consentimento. “O consumo de álcool pode prejudicar o julgamento e a capacidade de uma pessoa de dar ou entender o consentimento. Muitas vezes, presume-se que, se alguém estava bêbado, automaticamente, está disposto a atividades sexuais – o que sabidamente não é verdade”, aponta.
Educação é o caminho
Para desfazer tais mitos e mal-entendidos e prevenir situações de abuso, Enylda Motta indica ser preciso promover uma educação sexual consciente e respeitosa. E, para isso, diz ser importante falar sobre sexualidade na infância e adolescência. “Não se trata de incentivar a criança a fazer sexo, mas dar abertura para a criança perguntar sobre o que ela quiser. É importante lembrarmos que os tabus passados de geração em geração podem ser barrados e mudados ao longo do tempo a partir dessa postura mais assertiva”, garante.
O urologista Walter Fonseca concorda. Ele enfatiza que a educação sobre consentimento deve começar cedo a partir de ensinamentos sobre o respeito pelo próprio corpo e pelo corpo dos outros. “Pode-se usar exemplos apropriados para a idade, como compartilhar brinquedos ou respeitar o espaço pessoal. Algumas mães defendem o uso de consentimento no ambiente domiciliar desde cedo como forma de treinamento e educação: ‘Agora é hora de tirar a roupa para tomar banho, ok?’”, exemplifica. “À medida que as crianças crescem, a educação pode evoluir para discussões mais complexas sobre relacionamentos, autonomia e comunicação”, complementa, destacando também o papel de escolas e famílias para uma educação sexual abrangente.
“Todos temos medo, em algum momento, da exposição precoce e errônea das crianças à sexualidade, por isso a importância de profissionais e escolas treinados para fazer desse aprendizado uma etapa saudável e fisiológica para os pequenos. Educação sexual e ensinamentos sobre consentimento são armas eficientes contra o abuso sexual”, conclui o especialista.