Em poucos dias, os líderes das maiores economias do mundo reúnem-se no Rio de Janeiro para participar da Cúpula de Chefes de Estado do G20. O encontro será nos dias 18 e 19 deste mês, mas, em encontros temáticos prévios, os ministros dos países participantes firmaram compromissos, como as duas declarações de saúde aprovadas e divulgadas no dia 31 de outubro.
Os termos desses acordos foram debatidos ao longo de diversos encontros preparatórios, com a participação de organizações como o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef). Em entrevista exclusiva à EBC, a assessora regional para Saúde na América Latina e Caribe, Maaike Arts, falou sobre os pontos-chave dessas declarações e como podem contribuir para melhorar a vida de crianças em todo o mundo, especialmente as que vivem em comunidades mais vulneráveis.
EBC – Como vocês avaliam as duas declarações aprovadas após a reunião de ministros da Saúde?
Maaike Arts – Estamos muito empolgados e felizes com o resultado das duas declarações e também parabenizamos o governo do Brasil porque um dos pontos-chave discutidos foi clima e saúde. Esta é a primeira vez que o G20 faz uma declaração exclusiva sobre clima e saúde. Ou seja, sobre o impacto das mudanças climáticas na saúde e sobre as medidas que precisam ser tomadas, tanto de adaptação quanto de mitigação, para reduzir as mudanças climáticas e seu impacto na saúde. Este é um grande avanço. Outro grande tema que foi discutido, também graças à liderança do Brasil, foi o foco na equidade. Não deixar ninguém para trás, focando nas pessoas mais vulneráveis. Isso aparece em muitos dos diferentes documentos que foram aprovados, incluindo o que trata de clima e saúde. São pontos muito importantes para o Unicef, pois são importantes para todas as comunidades, para todas as famílias e, particularmente, para as crianças.
EBC – Situações de emergência historicamente afetam de maneira mais severa pessoas mais vulneráveis, especialmente crianças. Isso também está acontecendo agora com as mudanças climáticas?
Maaike Arts – Sim. As mudanças climáticas tornam ainda mais graves as desigualdades existentes. Então, quando falamos sobre crianças, é importante perceber que crianças não são apenas adultos em miniatura: a respiração delas é mais rápida, a capacidade de regular a temperatura do corpo é menor, porque o corpo ainda não está totalmente desenvolvido, o cérebro e os sistema imunológico ainda estão se desenvolvendo… Então, quando elas são afetadas pelas mudanças climáticas, por temperaturas muito altas, enchentes, ou insegurança alimentar, isso as impacta ainda mais, porque elas estão em crescimento. O corpo delas pode não se desenvolver de forma adequada, ou alguns órgãos do corpo podem não se desenvolver bem. Então, especialmente as crianças e, claro, dentro do grupo das crianças, aquelas mais vulneráveis, como as indígenas ou as que vivem em comunidades marginalizadas, serão ainda mais afetadas. O que vemos é que as mudanças climáticas ampliam ainda mais todas as diferenças existentes, e as crianças são especificamente vulneráveis.
EBC – Há muitos anos, organizações como o Unicef vêm alertando os governos obre os efeitos das mudanças climáticas, e ainda assim, a resposta não parece ser a ideal. Você acha que, finalmente, teremos mais ações concretas?
Maaike Arts – Sim, eu acho. Porque cada vez encontramos mais evidências de quão grande é o impacto das mudanças climáticas. As pessoas entendem que esta é uma questão importante para a vida de seus filhos e netos. Só que, atualmente, todos os dias vemos como enchentes, secas e furacões estão afetando a vida das pessoas. Vemos também o impacto das mudanças climáticas no dia a dia e que alguns problemas estão piorando, como a poluição ambiental, e que todas essas coisas estão interligadas. Eu realmente acho que as pessoas vão entender o impacto das mudanças climáticas e que precisamos agir e acelerar as ações. E também, a cada dia, encontramos mais soluções, como, por exemplo, a energia solar. Acho que, se a sociedade entender a gravidade da situação, com todas as opções que temos agora, e se os países aprenderem mais uns com os outros, será possível agir a tempo.
EBC – E tudo isso está diretamente ligado ao conceito de One Health (Uma Saúde), não é? Pode explicar melhor para a gente?
Maaike Arts – Temos aprendido muito nos últimos anos como a saúde dos animais, das plantas e do ambiente está ligada à saúde humana. No contexto das mudanças climáticas, por exemplo, precisamos de certas plantas para fabricação de medicamentos, e se essas plantas não conseguirem mais crescer, teremos menos acesso a esses medicamentos. Além disso, algumas bactérias ou vírus podem proliferar mais por causa das mudanças climáticas. Em certas condições ambientais, quando há poluição, por exemplo, nossa saúde sofre com isso. Quando muitos medicamentos, especialmente antibióticos, são usados para tratar animais, as bactérias podem se tornar resistentes a esses antibióticos e, então, não seremos mais capazes de tratá-las. A resistência microbiana é outro tema global relacionado a esse equilíbrio. Todas essas questões estão conectadas, e precisamos garantir que essas discussões sejam feitas de forma interligada.
EBC – Nós acabamos de sair de uma pandemia e muitos especialistas falam que há risco de novas pandemias no futuro. É possível se preparar para isso?
Maaike Arts – Há uma emergência de saúde pública de importância internacional, que é a mpox, que já está afetando muitos países na África. Portanto, precisamos aprender as lições da pandemia de covid-19, e algumas iniciativas interessantes que surgiram na reunião do G20 foram as sugestões para o financiamento. Como os países podem ter acesso a financiamento para a preparação e a resposta a pandemias? E como podemos estimar quais países estão mais em risco? Quais são os fatores específicos para determinar quais países estão mais vulneráveis a um surto ou epidemia? Além disso, foi bastante discutida a questão de tornar os testes, tratamentos e vacinas disponíveis mais rapidamente. Houve muito progresso nessa área.
EBC – Outro resultado da reunião ministerial que teve bastante destaque foi a criação de uma coalizão global para produção local e regional de insumos, como vacinas e medicamentos. Qual a importância disso, inclusive no caso de ocorrerem novas pandemias?
Maaike Arts – É sempre muito importante as famílias, as comunidades e os países terem acesso, ainda mais em situações de epidemia ou pandemia, a diagnóstico, tratamento, medicamentos. Felizmente, já temos vacinas para prevenir muitas doenças, mas, claro, é necessário ter acesso a essas vacinas a bom preço. Além disso, é preciso também garantir o transporte. Durante a pandemia de covid-19, nós vimos que havia um número limitado de produtores e muitos países precisaram esperar pela produção e pelo transporte. Se houver uma produção maior e também mais produtores locais, claro que isso vai facilitar o acesso às vacinas, mas também a medicamentos e testes, com um preço melhor. O que esperamos é que os países possam aprender uns com os outros e se apoiar dessa forma… Mostrar solidariedade internacional. O Brasil mesmo tem experiências muito boas nessa área e outros países podem aprender com vocês.
EBC – Por falar em vacinação, o Brasil está batalhando para recuperar os índices vacinais que caíram bastante em anos recentes, e o Unicef aqui tem se envolvido bastante com essa questão. Vocês também observam o mesmo problema em outros países da região?
Maaike Arts – Antes da pandemia, em muitos países da América Latina e do Caribe, a cobertura de várias vacinas importantes estava caindo, por diferentes razões. Aí, com a covid, muitos serviços de saúde ficaram fechados, as pessoas não podiam de sair de casa, tinham medo de ir a um centro de saúde, e claro, muitas ficaram doentes, a cobertura vacinal caiu ainda mais. Mas isso também serviu como um alerta. Quando vimos esses índices de vacinação, e em vários países tivemos mais casos de sarampo, por exemplo, muitos países começaram a tomar medidas, mas não é uma solução fácil. Precisamos olhar para o lado da demanda e garantir que as famílias saibam a importância de vacinar seus filhos. Se tiverem dúvidas, precisamos respondê-las, mas elas também precisam ter acesso a um ponto de vacinação ou a uma clínica de atenção primária de saúde próxima, a clínica precisa estar aberta quando os pais levarem seus filhos, e claro, as vacinas também precisam estar disponíveis e em boas condições. Portanto, todas essas coisas precisam estar em funcionamento. Muitos países estão fazendo seu trabalho em todos esses aspectos, desde estimular a demanda por vacinas até garantir o fornecimento.
EBC – E a gente também tem o desafio da desinformação, não só na área de vacinas, mas na saúde como um todo. Isso também foi discutido na reunião ministerial?
Maaike Arts – Sim, a desinformação é uma grande preocupação para todos nós, inclusive para o Unicef. E o que precisamos fazer é entender de onde ela vem. Por que as pessoas têm essas dúvidas? Uma coisa que sabemos sobre as vacinas, por exemplo, é que, felizmente, muitas doenças não são mais vistas justamente porque há vacinas contra elas… Então, muitas pessoas não sabem o que é o sarampo e se perguntam: “Por que eu preciso vacinar meu filho contra essa doença?” Talvez as pessoas tenham medo de que seu filho sinta dor ou podem querer entender o que é uma vacina, de onde ela vem. Portanto, é importante compreender exatamente qual é a preocupação das pessoas, qual é a informação que elas receberam, para poder iniciar uma discussão com elas. Também ouvimos em uma das reuniões que algumas plataformas de redes sociais estão trabalhando para reduzir e não permitir que certas informações sejam publicadas. Isso também é muito importante, que informações incorretas não sejam espalhadas ainda mais, e precisamos do apoio dos jornalistas e da mídia para lidar com isso. Mas as pessoas não recebem informações apenas de jornais. Então, também precisamos usar outros meios de comunicação para informar corretamente as pessoas.
EBC – As novas tecnologias também podem contribuir muito, não é?
Maaike Arts – Sim. Um exemplo é a telemedicina, que permite que as pessoas sejam tratadas por telefone. Mas também é muito importante a digitalização de todo o sistema de saúde. Assim, todas as informações coletadas podem ser armazenadas de forma digital, o que permite uma análise mais eficiente dos dados, e você pode vincular as informações de saúde a outros dados, como os de educação. Por exemplo, se houver uma criança com deficiência, a escola já é informada de que essa criança precisa de apoio. O Unicef tem realizado trabalhos muito interessantes em alfabetização digital, basicamente treinando agentes comunitários de saúde para usar seus celulares e ter acesso às informações de maneira fácil. Em comunidades remotas, por exemplo, o agente de saúde pode ir até lá e verificar no próprio celular: “uma criança com esses sintomas, o que isso significa? Qual é o tratamento?” e ele pode tratar a pessoa sem que ela tenha que ser levada a uma clínica. Então, há muitas oportunidades para a saúde digital, e isso pode facilitar muito o trabalho dos profissionais de saúde.
EBC – A situação dos trabalhadores da saúde também foi bastante discutida nas reuniões temáticas. Quais foram as conclusões?
Maaike Arts – Os profissionais de saúde trabalham na linha de frente da prevenção e do tratamento de doenças, e percebemos que precisamos fazer muito mais para atrair trabalhadores, mantê-los em seus empregos e apoiá-los para desempenhar bem suas funções. Sabemos que, muitas vezes, eles não recebem o suficiente para sustentar suas famílias, às vezes trabalham em condições inseguras, o trabalho pode ser fisicamente pesado. E, às vezes, vemos que grande parte da força de trabalho na saúde é composta por mulheres, mas os líderes são homens. Então, as mulheres não se sentem interessadas em permanecer no emprego, porque não veem como podem ser promovidas ou como o trabalho pode continuar sendo interessante. O Unicef está muito interessado também no grupo de agentes comunitários de saúde, porque eles frequentemente são os primeiros a perceber que as pessoas estão doentes. Eles conhecem as famílias e também são os melhores para informá-las sobre tratamentos, sobre vacinas. Em muitos países, eles fazem trabalho voluntário, não são reconhecidos como profissionais. Isso foi incluído especificamente na declaração de saúde do G20, que precisamos fazer mais pelos trabalhadores da saúde.
EBC – Falando um pouco da nossa região, quais os problemas de saúde que estão preocupando mais nesse momento?
Maaike Arts – Na verdade, há várias questões, mas uma que ainda está perto de se transformar em surto é a dengue. O Brasil foi bastante afetado por isso. Estamos trabalhando na prevenção, para garantir que os mosquitos não se reproduzam, e também que as pessoas possam ser diagnosticadas e recebam tratamento rapidamente. Há muitos problemas também relacionados a inundações e secas. Outras preocupações estão relacionadas à saúde materna e dos adolescentes. Por exemplo, a sífilis. É uma doença que pode ser facilmente tratada, mas precisa ser identificada cedo. Também temos casos ainda de crianças vivendo com HIV e o grande desafio da gravidez na adolescência. E, claro, as doenças mais tradicionais, como as respiratórias, continuam presentes e, infelizmente, em situações de emergência, são problemas que tendem a se agravar. Perigos ambientais, como a poluição do ar, podem piorar doenças como a pneumonia, por exemplo. Também estamos mais conscientes da importância da saúde mental. Para o Unicef, a preocupação, em primeiro lugar, é com as mães no período do parto e pós-parto, e também as crianças e adolescentes. Precisamos quebrar tabus sobre isso, falar sobre tais questões. E, quando alguém precisar de apoio, esse apoio tem que estar disponível. Indo para a questão da nutrição, em nossa região, temos alguns países com muitas crianças que são menores do que deveriam ser para sua idade. Isso ocorre especialmente em comunidades indígenas e em outras comunidades marginalizadas, e não está melhorando tão rápido quanto gostaríamos. Outra grande preocupação na área de nutrição é o excesso de peso. Parece uma contradição, mas não é. As razões pelas quais as crianças não crescem bem ou têm excesso de peso, muitas vezes, são as mesmas: muitos alimentos ultraprocessados disponíveis e mais dificuldade de praticar atividades físicas. E, com as mudanças climáticas, a disponibilidade de alimentos saudáveis está em risco, então pessoas com menos recursos terão cada vez menos acesso a alimentos saudáveis.
EBC – Uma das principais propostas desse ciclo do Brasil na presidência do G20 é justamente a formação de uma aliança global pelo fim da fome e da pobreza. Como isso pode contribuir para as pautas de saúde?
Maaike Arts – A pobreza afeta todos os aspectos da vida, incluindo a saúde. Por isso, a redução da pobreza é importante para tudo. E, às vezes, são coisas muito básicas. Em primeiro lugar, as pessoas que vivem na pobreza podem ter condições de vida piores: suas casas não têm isolamento adequado para a chuva, para o frio, para o calor. Assim, as crianças têm mais chance de adoecer. Além disso, elas podem não estar bem nutridas, o que as torna, novamente, mais vulneráveis a doenças. Além disso, são pessoas que podem não ter frequentado a escola por tempo suficiente e talvez não entendam como prevenir doenças ou como cuidar de problemas básicos. Em alguns países, o atendimento de saúde é gratuito, mas, em outros, não é, ou as pessoas precisam comprar medicamentos, e podem não ter dinheiro suficiente para isso. Então, sim, a redução da pobreza ajudaria muito na diminuição de doenças e no impacto que elas causam.
EBC – O G20 reúne as maiores economias do mundo, mas questões como essas impactam mais os países mais pobres, ou seja, que não fazem parte do grupo. Como garantir mudanças globais?
Maaike Arts – Em primeiro lugar, também em alguns dos países mais ricos, incluindo na nossa região da América Latina e Caribe, o Brasil e o México, existem desigualdades internas. Portanto, muitos dos pontos da declaração também são válidos para esses países. Nós estamos prontos para ajudar os governos a ver como podem transformar as palavras das declarações em ações práticas para reduzir a distância entre os mais ricos e os mais pobres. Além disso, alguns países do G20 são países doadores. Então, quando forem apoiar outros países, esperamos que apliquem algumas das sugestões e recomendações feitas nas declarações, para que possam se expandir para além dos países que participaram do encontro, porque são medidas muito relevantes.
Fonte: Agência Brasil