O Índice de Estigma, divulgado pelo Unaids em 2019, indicou que 64% das pessoas vivendo com HIV ou Aids já sofreram alguma forma de discriminação.

“Leve esta garrafa de água sanitária e, quando você sair do banheiro, desinfete todos os locais que você utilizar.”

Foi isso que Vanessa Campos conta que ouviu de uma enfermeira-chefe quando foi tomar banho na maternidade depois do parto, em 2001. Na época, já tinha uma década que ela tinha sido infectada pelo HIV.

Vanessa, hoje secretária nacional de Comunicação da Rede Nacional de Pessoas Vivendo com HIV e Aids (RNP+ Brasil), considera que a sociedade ainda tem preconceito. A situação envolvendo a infecção de transplantados no Rio reacendeu o debate sobre a sorofobia – o preconceito contra pessoas que testaram positivo para o vírus da imunodeficiência humana.
Vanessa foi diagnosticada em 1990, na adolescência. “Naquela época, ainda era uma sentença de morte”, lembra.

“Estigma e discriminação permanecem os mesmos desde o início da pandemia de Aids. O que mudou para melhor foi a evolução do tratamento e o acesso a ele. O ativismo das pessoas que vivem com HIV protagonizando a luta contra o estigma e a discriminação tem dado bons frutos ao longo desses mais de 40 anos de epidemia”, continua ela.

O episódio na maternidade, infelizmente, não foi um caso isolado na trajetória dela. Anos antes, em 1993, ela conta que um infectologista disse que era melhor ela fazer um aborto do que engravidar. E situações como essa se repetiram e ainda se repetem. Não só com Vanessa, mas com outras pessoas que vivem com o vírus.

Após 30 anos vivendo com o HIV, Vanessa escreveu um livro sobre a sua trajetória. “SoroposidHIVa, uma mulher na diáspora da Aids” foi lançado em março deste ano e pode ser lido gratuitamente na internet nas redes do Soroposidhiva.

HIV x Aids

O caso de 6 pacientes infectados com HIV em transplantes de órgãos no sistema público do RJ é investigado pela polícia e outros órgãos. Quatro pessoas foram presas.

“Eu tenho certeza de que, infelizmente, esses casos de infecções causadas nos transplantes vão trazer mais à tona e aumentar o preconceito com pessoas que vivem com HIV, por conta da desinformação”, afirma Walter Sabino, que é ativista e liderança jovem HIV/Aids e interseccionalidade no Rio de Janeiro.

“A grande questão é que as pessoas ainda têm um pavor quando escutam sobre infecção por HIV, ou somente HIV. Grande parte da sociedade associa diretamente o diagnóstico de infecção de HIV à Aids. Essa é uma questão importante. Ter um diagnóstico positivo para o HIV não tem ligação de obrigatoriedade com desenvolver a síndrome”, explica o carioca Ueverton Pessanha, que usa as redes sociais para falar sobre a temática.

“Eu acredito que o pior preconceito é aquele que vem de quem a gente espera que nos abrace , como a nossa família e até mesmo de médicos e profissionais da saúde. Mas, às vezes, é exatamente desses lugares que vem o preconceito”, emenda ele.

O Índice de Estigma, divulgado pelo Unaids em 2019, indicou que 64% das pessoas vivendo com HIV ou Aids já sofreram alguma forma de discriminação. A mesma pesquisa indica que a forma mais comum de rejeição no Brasil é a partir de comentários preconceituosos, assédio verbal e perda de fonte de renda ou emprego.

“Quando falamos sobre HIV, precisamos lembrar que, antes de ser uma pessoa vivendo com HIV, ela é uma pessoa. Isso quer dizer que ela tem sonhos, planos, trabalho, família e muitas outras coisas que acabam sendo colocadas para trás quando a sorologia dela entra em questão”, explica a diretora e representante do Unaids no Brasil, Andrea Boccardi.
“O estigma e discriminação sobre pessoas com HIV sempre retornam à pauta e ao debate público. Então, sim, vemos que muitas pessoas não têm informação sobre o tema e utilizam palavras estigmatizantes e preconceituosas em relação às pessoas que vivem com HIV”, afirma Andrea.

Para Boccardi, a falta de regulação de discurso de ódio em redes sociais é uma preocupação e pode gerar consequências para esses grupos, que estão marginalizados.
Nesse caso, os entrevistados apontam que o debate público saudável e a disseminação de informações e explicações sobre a temática são coisas que ajudam a combater diretamente a sorofobia.

“O tabu do sexo unido ao julgamento moral nos coloca no imaginário popular como ameaças à sociedade e pessoas que não são merecedoras de viver dignamente. Isso precisa mudar”, diz Vanessa.

A mídia, de acordo com eles, pode ser uma aliada nessa jornada.

“Grande parte das pessoas ainda associa notícias veiculadas sobre HIV com a matéria da revista Veja com o Cazuza na capa. Não me lembro da última vez que vi uma matéria em capas de grandes veículos de comunicação, exaltando o bem-estar de pessoas que vivem com o HIV. Não existe mais uma cara para quem vive com o HIV. As pessoas têm uma vida linda, quando recebem acesso a terapia de qualidade, sem tratamentos discriminatórios”, destaca Ueverton.

“A questão é que as pessoas ainda parecem ter medo de falar sobre o HIV. Existe um medo de falar sem ser ‘associado a conviver com o HIV. O medo do diálogo associativo ainda é um limitador de diálogos. Você não precisa ser um profissional da saúde ou PVHIV para falar sobre o tema. O descompromisso da sociedade e os preconceitos atualmente matam mais que a Aids”, completa ele.

Walter acredita que, mesmo com o avanço, as informações dependem de divulgação.

“A gente avançou muito no campo das informações, mas acho que são pouco divulgadas. Faltam campanhas e investimentos do governo para liberar o acesso a essas informações para todas as pessoas. A gente ainda tem uma sociedade preconceituosa, porque ainda tem um estigma muito grande que é causado pela desinformação”, afirma.

“Se eu puder deixar um recado para todas as pessoas e principalmente para quem já passou por preconceitos, violências e violação dos protocolos do Ministério de Saúde, eu me coloco à disposição e o aparato do Grupo pela Vidda Rio+, que é uma instituição que já lida há 35 anos com combate à epidemia de HIV e Aids no país e luta pelos direitos das pessoas com HIV”, completa Sabino.

Fonte: G1