O romantismo que a tuberculose ensejava nas óperas, livros e filmes criou o conceito do “sofrimento por amor”, que atacava os pulmões e enfraquecia a alma do enamorado. Hoje, no século 21, esta ideia se encontra ultrapassada. Basta ver os dados e notar que a TB é constante nos aglomerados urbanos, que abrigam os pobres e pretos nas periferias das grandes cidades, impactando fortemente a população em situação de rua, está destacada nos presídios concentrando cada vez um número maior de detentos por metro quadrado, avança nas comunidades indígenas e afeta seriamente pessoas que vivem com HIV/aids. Tuberculose virou sinônimo de exclusão, preconceito, sofrimento e morte justamente num período em que a tecnologia mais avançou, ganha destaque ainda o fantasma da fome que segue causando sofrimento e se torna um fator agravante do desenvolvimento da TB.

O Brasil voltou a figurar no Mapa da Fome da Organização das Nações Unidas (ONU) a partir de 2015, obtendo um especial agravamento ao longo da pandemia de Covid-19. Em 2022, o Segundo Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar apontou que 33,1 milhões de pessoas não têm garantido o que comer — o que representa 14 milhões de novos brasileiros em situação de fome. Conforme o estudo, mais da metade (58,7%) da população brasileira convive com a insegurança alimentar em algum grau: leve, moderado ou grave.

A fome e a desnutrição são fatores de agravamento da tuberculose, e devem ser políticas desenvolvidas de forma complementar. Já há anos se tenta incluir o tratamento da TB como condicionante para o bolsa família, o que refletiria diretamente na adesão e superação da doença, além de possibilitar fortalecimento físico para outras demandas como o trabalho e o estudo. Não basta avançarmos em novas formas modernas de tratamento, se não acompanharmos a sustentação dos organismos debilitados, muitos dos quais reagem de forma resistente aos remédios, necessitando esta complementariedade nutricional.

A busca do trabalho conjunto das áreas de Saúde, Direitos Humanos e Assistência Social é fundamental para que um novo passo de ação multidisciplinar com vistas a atacar este grave problema. O Brasil é uma das maiores economias do mundo, não pode manter esta chaga social que se revela todos os dias nas esquinas e sinais das grandes cidades, a vergonha de haver brasileiros ostentando palavras pedindo ajuda porque passam fome atinge a todos nós. Além disto, o aumento no número de pessoas vivendo em situação de rua cria cidadãos de segunda classe, despidos de dignidade e respeito. Em ambos os casos estes são terrenos férteis para a proliferação da tuberculose, que se desenvolve num organismo enfraquecido física e emocionalmente e se transmite ao entorno dos afetados, criando uma cadeia terrível de devassidão.

Neste 24 de março – Dia Mundial de Luta contra a Tuberculose – é importante chamar a atenção para os grupos vulneráveis que figuram entre os mais atingidos, para criação de políticas transversais que os atinjam de forma ampla. A integração entre as diversas áreas atuantes neste campo (sociedade civil, gestores, pesquisadores, profissionais de saúde etc.) é o caminho para este enfrentamento, mas cabe ao Governo Federal a liderança deste movimento, coordenando ações e desenvolvendo políticas e projetos com orçamento compatível que sejam sintonizados com estas realidades. Somente com a superação destas desigualdades é que a fome será erradicada, a TB será controlada e teremos realmente motivos para comemorar o 24 de março.

* Márcia Leão é advogada, ativista do movimento aids e tuberculose e coordenadora executiva do Fórum ONG/Aids do Rio Grande do Sul.

** Este artigo foi escrito em parceria com a ativista Jô Meneses e o jornalista Liandro Lindner.  Jô é coordenadora de Programas Institucionais da Gestos e Liandro é doutor em Saúde Pública, ativista do movimento de redução de danos, aids e tuberculose.

*** Márcia, Jô e Liandro formam a Coordenação Executiva da Parceria Brasileira contra a Tuberculose – Stop TB/ Brasil