Nos últimos anos, o uso de drogas em contextos sexuais tem se tornado uma preocupação global de saúde pública. Sabe-se que o uso de substâncias nas relações sexuais não é novidade, contudo, evidências científicas têm apontado para a necessidade de uma resposta mais programática das políticas públicas.

Esse fenômeno cultural inserido na epidemia de HIV/Aids tem chamado atenção pela questão da vulnerabilidade, ou seja: aumento dos casos de infecção de HIV, sífilis e hepatite C [1]; uso de drogas injetáveis chamado de slamsex [2]; escassez de estratégias de redução de danos [3].

Os determinantes sociais da saúde como as desigualdades sociais, o estigma e a discriminação são importantes para compreender a prática do sexo químico. Essas barreiras estruturais dificultam o acesso à serviços de saúde de homens que fazem sexo com homens e pessoas que usam/injetam drogas. As pessoas adeptas desta prática estão na intersecção de duas principais comunidades estigmatizadas (homens que fazem sexo com homens e pessoas que usam drogas).

Homens que fazem sexo com homens, principalmente, gays, brancos, cisgêneros e de classe média são os mais afetados pelo sexo químico, contudo há poucas informações sobre esse problema de saúde pública em homens bissexuais, pansexuais, mulheres e homens trans. Outro ponto importante são as questões raciais em relação ao sexo com uso de substâncias, incluindo também outras cenas sexuais como a prostituição (mais focado em mulheres trans e travestis) e espaços de socialização (mais focados em jovens que estão em fluxos e bailes funks).

Situação atual

Essa prática começou a se espalhar a partir do Reino Unido no início de 2010 [4] e a maior parte das evidências disponíveis estão concentradas na América do Norte, Oceania e Europa Ocidental [5] sendo que uma revisão sistemática da literatura identificou que entre 3% e 29% dos homens que fazem sexo com homens em todo o mundo praticaram sexo químico pelo menos uma vez na vida [6].

Um inquérito europeu de 50 países concluiu que 15% dos homens que têm relações sexuais com homens alguma vez praticaram chemsex e 68% deles o fizeram nos últimos 12 anos, sendo que 5% de todos os entrevistados relataram sexo químico nas últimas quatro semanas [7].

Uma revisão na Ásia aponta que a prevalência do uso sexualizado de drogas (um termo mais amplo do que chemsex) entre homens que fazem sexo com homens varia entre 3,6% e 60% em estudos da China, Hong Kong, Malásia, Taiwan, Tailândia e Vietnã [8].

O sexo químico pode ocorrer em diversos ambientes, desde festas organizadas de forma privada com vários participantes até saunas e locais de sexo no local, e esses eventos geralmente duram vários dias (por exemplo, durante o fim de semana). Outro elemento do fenômeno é o envolvimento das tecnologias digitais como redes sociais de geolocalização e aplicativos de namoro como Grindr, Hornet ou Scruff usados por homens gays que facilitaram o crescimento de encontros sexuais casuais e em grupo.

Principais substâncias

Metanfetamina, Mefedrona, GHB e GBL são as principais substãncias utilizadas no sexo químico. Estas drogas são referidas como “químicas”, embora outras drogas também estejam frequentemente envolvidas, tais como álcool, poppers, cocaína e viagra.

Existem diferenças significativas nas substâncias utilizadas em todo o mundo e até entre cidades do mesmo país. Por exemplo, na Itália, a mefedrona é a principal substância utilizada na cena do sexo químico ao lado do GHB, enquanto o uso de crack também está emergindo nesta cena, especialmente em Milão [9,10]. Há uma forte ligação entre metanfetamina, GHB/GBL e poppers no Canadá, mas há pessoas que também usam cogumelos com psilocibina, cannabis, cetamina, MDMA, cocaína e álcool [11,12].

Uma grande variedade de substâncias está envolvida na cena do sexo químico, embora haja um foco significativo em estimulantes e substâncias com efeitos desinibidores. Outra característica do consumo de substâncias neste contexto é o uso de múltiplas drogas ao mesmo tempo, o que por si só pode aumentar os riscos do consumo de substâncias.

Modos de uso

Praticamente todos os modos de uso estão presentes na cena do sexo químico, incluindo uso oral, aspirado, inalado, retal, uretral e intravenoso. Estima-se que a prevalência do consumo de drogas injetáveis em ambientes sexualizados entre homens gays e outros homens que fazem sexo com homens varie entre 1% e 50% na Europa Ocidental e na Austrália, enquanto estudos que examinaram esta questão em grandes amostras relataram uma faixa de prevalência de 1% a 9% [12].

O consumo de drogas injetáveis está documentado na Ásia, incluindo na Malásia e no Bangladesh. Existem dados que sugerem que a injeção intravenosa está aumentando na região, embora seja menos prevalente do que na América do Norte, na Oceania e na Europa Ocidental [9]. A metanfetamina é a substância injetada mais frequentemente utilizada no sexo químico em todas as regiões onde existem dados disponíveis [9–11] o que sublinha ainda mais a necessidade de redução de danos, uma vez que a injeção de estimulantes tem sido associada a surtos locais de HIV em muitos países, incluindo cinco países na Europa Ocidental nos últimos cinco anos [14].

Vulnerabilidade 

Geralmente, o sexo químico envolve sexo grupal com múltiplas parcerias e a realização de atos sexuais como o fisting [9,15]. As pessoas que praticam chemsex têm maior probabilidade de fazer sexo desprotegido, o que aumenta os riscos à saúde relacionados ao sexo, incluindo HIV, ISTs e hepatites virais [9,11].

Dois estudos no Reino Unido identificaram que participantes do sexo químico tem mais acesso à profilaxia pós-exposição (PEP) do que os participantes que não praticavam chemsex, e um estudo na Holanda relatou que aqueles que praticavam chemsex tinham maior probabilidade de estar em profilaxia pré-exposição (PrEP) [9], sendo que as pessoas que praticam sexo químico são um grupo importante para a PrEP e a PEP,[16]. Outro ponto são os riscos de lesões anais e genitais pela atividade sexual que pode durar horas ou dias, além da violência sexual em alguns casos.

Redução de danos

No contexto do sexo químico, a redução de danos deve incluir em suas estratégias:

  • Envolvimento da comunidade afetada pelo sexo químico na elaboração de políticas públicas, incluindo concepção, implementação e avaliação das estratégias;
  • Serviços integrados de redução de danos, saúde sexual e saúde mental;
  • Incorporação online da redução de danos em aplicativos de encontro sexuais;
  • Disponibilização de kits de redução de danos com agulhas e seringas descartáveis, preservativos, lubrificantes, informações sobre substâncias e kit sniff para drogas inaladas;
  • Acesso ampliado e extramuro à testagem de HIV, sífilis e hepatites virais, incluindo diagnóstico e tratamento o mais rápido possível;
  • Educação permanente de gestores e profissionais de saúde sobre os contextos de sexo químico, o papel da redução de danos e da prevenção combinada.

Exemplos de estratégias de redução de danos

Chemsex Support, Stop SIDA em Barcelona: é um programa dedicado ao sexo químico com encaminhamento aos serviços do sistema de saúde espanhol. O psicólogo é responsável pela organização do cuidado desde terapia psicossocial presencial ou online até sessões em grupo. Nos casos em que é necessário um psiquiatra, ele pode encaminhar a pessoa para o departamento de uso de substâncias de um hospital local. O programa também tem grande presença online, onde respondem dúvidas no app MachoBB (site de namoro para sexo sem uso de camisinha) de todo o país. A equipe também criou um site com informações sobre chemsex, acompanhado de um blog onde colegas compartilham suas experiências com chemsex. A organização tem um canal no YouTube e produziu diversos vídeos sobre chemsex, explicando práticas relacionadas à redução de danos, por exemplo, uso de injetáveis mais seguros. Para saber mais: https://stopsida.org/sexo-y-drogas/.

Lighthouse, Vietnã: é uma organização comunitária com espaço online, GTow, reunindo  páginas, grupos, fóruns, informações sobre direitos, notícias, eventos sobre saúde sexual de jovens LGBTQIAPN+ com uma extensa base de conhecimentos sobre redução de danos, prevenção combinada e saúde mental. A organização também é responsável por webinars sobre práticas de sexo químico, implementando intervenções comunitárias, por exemplo, ações de sensibilização lideradas por pares em Hanói, em locais frequentados pela comunidade, como saunas. Eles também têm uma “clínica completa” chamada Lighthouse Clinic em Hanói, onde jovens gays, jovens LGBTQIAPN+, jovens profissionais do sexo e jovens que injetam drogas podem visitar para questões relacionadas à sua saúde sexual. A Lighthouse também oferece treinamento para serviços de saúde, onde educadores de pares informam sobre as características, necessidades e questões da comunidade de sexo químico, treinando profissionais em comunicação para a linguagem da comunidade LGBTQIAPN+ e pessoas que usam drogas para fornecer informações de alta qualidade para o atendimento em saúde. Para saber mais: https://lighthousevietnam.org/.

ReShape/International HIV Partnerships (ReShape): é um projeto com foco em estratégias de prevenção combinada ao HIV com o objetivo de acelerar, expandir e melhorar a resposta ao chemsex em toda a Europa e no mundo. A ReShape está inserida no Fórum Chemsex, incluindo pessoas que praticam chemsex, organizadores comunitários, pesquisadores, médicos e assistentes sociais, sendo registrada no Reino Unido como ReShape/International HIV Partnerships Community Interest Company e na Holanda como ReShape/International HIV Partnerships Stichting. Para saber mais: https://reshapeorg.com/who-we-are-2/.

Centro de Convivência É de Lei, Brasil: é uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos que atua desde 1998 na promoção da redução de riscos e danos, sociais e à saúde, associados à política de drogas. Desde 2018, tem trabalhado com a pauta do sexo químico, realizando grupo de estudos, produção de material informativo, ações diretas junto aos usuários, distribuição de insumos em cenas de uso, articulação com serviços especializados de prevenção e de saúde mental e capacitação para equipes de saúde tanto do É de Lei quanto serviços de saúde públicos e privados, além de incentivar a testagem rápida de HIV, ISTs e hepatites virais, bem como, autoteste de HIV. Para saber mais: https://edelei.org/o-que-e-chemsex/.

ColocAÇÃO, Instituto Multiverso, Brasil: é a primeira instituição brasileira com projeto aprovado sobre sexo químico para compreender como se dão as dinâmicas dessa prática em duas regiões da cidade de São Paulo, no bairro República conhecida pela noite LGBTQIAPN+ e no Capão Redondo, bairro periférico com mais de 300 mil habitantes, visando o autocuidado no âmbito da epidemia de HIV/Aids e outras ISTs, contribuir na construção de saberes para a ampliação do debate acerca desta prática, através de ações de campo, comunicação digital em massa, formação de influenciadores e produção/difusão de materiais educativos. Para saber mais: https://www.institutomultiverso.org/projeto-colocacao.

Conclusão

É de suma importância fornecer serviços de redução de danos, a fim de garantir acesso à informação, insumos de prevenção e serviços para redução da vulnerabilidade. Além disso, a integração efetiva dos serviços de HIV e de álcool e outras drogas é primordial, somado a singularidade desta prática na relação com a classe, a raça, o gênero e a sexualidade, Este é um fenômeno que necessita de maiores discussões sobre o contexto brasileiro, sobre as cenas sexuais e sobre as cenas de uso que acontecem nos centros da cidade, mas também nas regiões periféricas.

 

Referências

  1. Tomkins A, George R, Kliner M. Sexualised drug taking among men who have sex with men: a systematic review. Perspect Public Health. 2019.
  2. Dolengevich-Segal H, Gonzalez-Baeza A, Valencia J, Valencia-Ortega E, Cabello A, Tellez-Molina MJ, Perez-Elias MJ, Serrano R, Perez-Latorre L, Martin-Carbonero L, Arponen S, Sanz-Moreno J, De la Fuente S, Bisbal O, Santos I, Casado JL, Troya J, Cervero-Jimenez M, Nistal S, Cuevas G, Correas-Lauffer J, Torrens M, Ryan P; U-SEX GESIDA 9416 Study. Drug-related and psychopathological symptoms in HIV-positive men who have sex with men who inject drugs during sex (slamsex): Data from the U-SEX GESIDA 9416 Study. PLoS One. 2019
  3. Strong C, Huang P, Li CW, Ku SW, Wu HJ, Bourne A. HIV, chemsex, and the need for harm-reduction interventions to support gay, bisexual, and other men who have sex with men. Lancet HIV. 2022.
  4. 4 WHO. WHO-commissioned global systematic review finds high HCV prevalence and incidence among men who have sex with men[ Internet]. 2021.
  5. Bourne A. Drug use among men who have sex with men – Implications for harm reduction. In: Global State of Harm Reduction 2012. London: Harm Reduction International; 2012.
  6. Maxwell S, Shahmanesh M, Gafos M. Chemsex behaviours among men who have sex with men: A systematic review of the literature. International Journal of Drug Policy 2019;63:74–89.
  7. The EMIS Network. EMIS-2017: the European men who have sex with men Internet survey : key findings from 50 countries.[ Internet]. Stockholm: European Centre for Disease Prevention and Control; 2019.
  8. APCOM. A qualitative scoping review of sexualised drug use (including Chemsex) of men who have sex with men and transgender women in Asia. APCOM; 2021.
  9. Minucci M. HRI expert survey on chemsex response. 2021.
  10. Nimbi FM, Rosati F, Esposito RM, Stuart D, Simonelli C, Tambelli R. Chemsex in Italy: Experiences of Men Who Have Sex With Men Consuming Illicit Drugs to Enhance and Prolong Their Sexual Activity. The Journal of Sexual Medicine 2020;17(10):1875–84.
  11. Adams M. HRI expert survey on chemsex response. 2021.
  12. Fafard A. HRI expert survey on chemsex response. 2021.
  13. Maxwell S, Shahmanesh M, Gafos M. Chemsex behaviours among men who have sex with men: A systematic review of the literature. International Journal of Drug Policy 2019;63:74–89.
  14. HRI. Global State of Harm Reduction 2020[ Internet]. London: Harm Reduction International; 2020.
  15. Sorriano R. HRI expert survey on chemsex response. 2021.
  16. Sewell J, Cambiano V, Speakman A, Lampe FC, Phillips A, Stuart D, et al. Changes in chemsex and sexual behaviour over time, among a cohort of MSM in London and Brighton: Findings from the AURAH2 study. International Journal of Drug Policy 2019;68:54–61.

 

* Allan Gomes de Lorena, é sanitarista pela Faculdade de Saúde Pública da USP, especialista em gestão de redes de atenção à saúde pela Fiocruz e mestre em saúde coletiva pela Faculdade de Medicina da USP, sendo autor dos livros “Sem Perreco: a prevenção do HIV em fluxos, festas e bailes funks” e “Uma ou várias? IdentidadeS para o sanitarista” ambos publicado pela Editora Hucitec. Trabalha na gestão do SUS desde 2017 junto às periferias da cidade de São Paulo. É também Consultor Técnico do Projeto “ColocAÇÃO: redução de danos da periferia ao centro” do Instituto Multiverso a partir do edital do Fundo Positivo.

** Karin Di Monteiro, é Bacharel em Ciências Biológicas pela UNESP, mestre e doutora em Psicobiologia pela UNIFESP, agente de redução de danos e coordenadora do Núcleo de Ensino e Pesquisa no Centro de Convivência É de Lei, pesquisadora do Laboratório de Saúde Coletiva – LASCOL (UNIFESP), docente do Bacharelado em Psicologia na UniPaulistana, membra do GT-Chemsex do Centro de Referência e Treinamento DST/AIDS-SP (CRT) .