Consta em meu currículo minhas graduações, cursos, experiências profissionais e, jamais deixo de incluir, que sou “aprendiz de pajé”. Em minha cultura Pataxó, no auge dos 60 anos é uma imensa realização ser escolhido Pajé. Não sei se terei o privilégio de ocupar essa função, mas sonho chegar lá.

É também aos 60 anos que ganhamos o título de “livro sagrado”, pois na altura de seis décadas, teremos vivido o bastante para ensinar por meio de nossas próprias histórias. Muito provavelmente, uma das experiências que contarei às minhas filhas, netos e jovens da comunidade terá como principal personagem uma “criatura” transmutada nos últimos 60 anos…

De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) o COVID-19 ou coronavírus é uma mutação dos agentes da família do SARS-CoV e MERS-CoV; esses hospedeiros em contato com o homem e com os animais causaram, e ainda causam, males terríveis. Contágios como esses foram notificados em 1960 e agora, em 2020, centenas de milhares de pessoas foram infectadas e outras tantas mortas, exatamente 60 anos depois, 60 anos de mutação, 60 anos de melhoramento de seu poder, 60 anos de organização, 60 anos de inteligência viral. O que precisamos aprender com um vírus?

A decodificação da linguagem corporal, técnica que faz um paralelo entre as dores físicas e psicoemocionais, nos permite uma leitura das doenças ligadas ao sistema respiratório: pessoas que sofrem com doenças nessa região geralmente são indivíduos que vivem e convivem em um ‘ambiente pesado’, onde é difícil respirar o ar do bem-estar, o bom ar do bem-viver. Também indica o sentimento de estarmos bloqueados na vida psíquica emocional, pessoal, espiritual e transgeracional. Por outro lado, se olharmos atentamente para este que nos ataca podemos tentar entender: Quem é nosso agressor? Como pode, em pouco tempo, ser tão letal, mas também eficaz na sua distribuição, disseminação e contágio entre seres humanos? Por que, mais uma vez, outra doença ataca as vias respiratórias, assim como as já mencionadas acima, a H1N1 e agora o corona?

A ideia não é trazer-lhes respostas para estas perguntas, mas sim trazer uma nova leitura, outro olhar sobre essa pandemia. Há vários anos trabalhando como terapeuta comunitário e cuidador indígena, acompanhando, observando e aprendendo com meu pai (pajé Itambé), minha mãe (dona Maria), e com diversos cuidadores de várias comunidades e culturas indígenas, tenho visto uma ambiguidade no que se diz respeito à tecnologia. A cada dia as grandes invenções são melhoradas e contribuem para o avanço da humanidade; por outro lado, a cada inovação sofremos sérias consequências, algumas irreparáveis, dentre elas o distanciamento corporal e aproximação por aplicativos e a substituição e desvalorização da mão de obra humana por máquinas. Como chegar ao um denominador comum?

Da família SARS-CoV e MERS-CoV, o coronavírus possivelmente se transmutou em 60 anos, idade média da maioria das atuais vítimas fatais pelo mundo. Nesse mesmo período, no ano de 1960, esses vírus foram identificados; época que os EUA lançava o primeiro satélite meteorológico, também foi o lançamento do primeiro computador eletrônico com disco rígido, o RAMAC 305, e anos seguintes seu primeiro chip; Brasília se tornaria capital brasileira; foi construído o muro de Berlim; a TV se torna o principal veículo de informação, momento que surgem os movimentos Hippies e feministas influenciando, dentre outros aspectos, a moda com as roupas unissex e as minissaias, contrários a guerra fria e do Vietinã, e fortalecendo a luta por igualdade nas manifestações a favor dos black power, gay power e women’s lib. Essa década ficaria conhecida como anos rebeldes, por causa de acontecimentos históricos e importantes no cenário mundial. Como citei acima, para nós indígenas brasileiros, é com 60 anos que entramos para o seleto grupo dos sábios.

Olhando por essa perspectiva, o nascimento da criatura coronavírus, hoje rebelde, vai se tornando sábia. Visualizo que ainda estamos vivendo os anos rebeldes, ainda construímos grandes muros, os black power, gay power e women’s lib ainda estão ativos na luta, ainda temos guerras, nos irritamos com a previsão meteorológica e esquecemos que era só uma previsão, ocupamos todos os bons espaços de nosso planeta e agora não nos basta apenas ir até o espaço, é necessário conquistá-lo e talvez habitar outro astro, a televisão é o centro atrativo da família – seja ela na sala em uma estante ou parede -, o computador foi e é uma excelente invenção e, se a máquina mais perfeita já construída não aperta o botão de START ele não passará de um simples ou mais um objeto.

Construímos casas e passamos a maior parte do tempo na rua, temos celular e praticamente ficamos incomunicáveis, temos muita criação e pouca acessibilidade, plantamos muito e muita gente morre de fome, estamos conhecendo aos poucos o universo e os mistérios da terra e ainda não conhecemos de nós quase nada. Esse hospedeiro dos corpos humanos vem nos lembrar de que podemos, de maneira benéfica ou maléfica, sermos hospitaleiros com um vírus ou com as pessoas. Diante desse cenário mundial, fomos obrigados a desacelerar, a repensar família, repensar comunicação e informação, fomos obrigados a nos separar de quem quase não conhecemos em meios as relações sociais e nos achegarmos aos velhos conhecidos e estranhos de nossas casas, repensamos trabalho, lazer, descanso, nostalgia, melancolia, criatividade, amor, afetividade e felicidade.

Por falar em felicidade, segundo o site da ABRATA (Associação Brasileira de Famílias, Amigos e Portadores de Transtornos Afetivos), cerca 700 milhões de pessoas são afetadas em todo o mundo com transtornos mentais e que a depressão e ansiedade estão no topo da lista. Esse hospedeiro, desde sua descoberta, traz a mensagem corporal com seus sintomas. Antes mesmo da chegada, as mensagens psicológicas aparecem na dianteira em forma de preocupação, medo e ansiedade. Esse hospedeiro nos assombra com o isolamento do convívio social e medo do invisível, nos coloca, de maneira global, dentro de casa para que reestabeleçamos o convívio íntima que pode ser a cura da ansiedade, que pode ser a cura do cair (que é depressão), com elevação, proeminência, projeção do estar com o outro ou comigo mesmo.

Diante da estrutura pandêmica encontramos músicos cantando e tocando nas sacadas e janelas, jovens se oferecendo para correr o risco da contaminação para fazer compras, ruas antes cheias agora estão vazias, famílias caladas que agora devem conversar sobre muita coisa ou nada, cidades que não enxergavam as estrelas agora têm o céu colorido e limpo. Esse vírus nos ensina que precisamos reaprender que a saúde depende de todos, descobrimos que um ato isolado pode afetar a humanidade e que a humanidade deve repensar seu modelo de vida e de viver, descobrimos que a relação homem e natureza de ser feita de maneira amigável e equilibrada; descobrimos que não importa classe social, orientação sexual, posição econômica, partidária ou religiosa, não importa a localização geográfica, o coronavírus nos informa que somos apenas HUMANOS, com o desejo de viver muito além dos 60 anos!

 

 

* Ubiraci Pataxó é palestrante, educador, terapeuta, massoterapeuta, Pajé em formação. Graduado em Ciências da Natureza e Matemática, possui Licenciatura Intercultural Indígena pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia. Também é formado em Terapia Comunitária Integrativa (TCI), Massoterapia e Técnico em resgate da autoestima pela Universidade Federal do Ceará. É pesquisador nos projetos “Saúde Coletiva, Epistemologias do Sul e Interculturalidades”, na Universidade Federal do Sul da Bahia, em parceria com a Universidade de Coimbra (Portugal), e “Teia das 5 curas: Todos nós somos parentes”, que envolve povos indígenas no Brasil, Peru, México e Canadá, da Universidade da Columbia Britânica (Vancouver, Canadá), com enfoque nas cinco curas: pensamentos, sentimentos, relações, ciclos ecológicos e trocas econômicas.

 

Fotografia por: Luciano Piva

Dica de entrevista

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