Viaturas policiais em chamas, monumentos e estátuas que homenageiam escravocratas sendo derrubadas, pessoas reunidas nas ruas clamando por justiça. Junho de 2020 ficará marcado profundamente na memória da sociedade como um momento histórico de luta pela equidade de direitos e contra o racismo.

O mundo se chocou com as imagens que, por dias, foram exibidas diversas vezes nas tvs, capas de jornais e redes sociais. Nelas, podemos ver um policial branco, Derek Chauvin ajoelhado sobre o  pescoço de um homem negro, George Floyd que morreu asfixiado. Na mesma proporção, as notícias exibiam hospitais lotados em situação de colapso com milhares de pessoas infectadas pelo Covid-19, pandemia que, assim como a AIDS, apresenta uma letalidade desproporcional em pessoas negras em relação a pessoas brancas.

Analisando os dados sobre violência policial, Covid-19 e HIV,  percebemos que essas três problemáticas se convergem em algo maior que é o Racismo –  estrutura social que marca cotidianamente corpos negros para morrer -“O racismo subverte os fundamentos da dignidade humana. Um sentimento tóxico que se espalha e corrói, feito um tumor.” diz José Vicente no manifesto “Movimento Ar” lançado pela Faculdade Zumbi dos Palmares nesta terça-feira (30/06). Mesmo diante de uma pandemia global em curso, populações se revoltaram e tomaram as ruas de diferentes cidades do mundo, gerando um levante contra o racismo, violência policial e todas políticas de morte adotadas pelo Estado como arma de extermínio de pessoas negras/racializadas e periféricas.

Diante desse cenário, refletimos se realmente as vidas negras importam para além de uma hashtag ou e de uma tela preta às terças-feiras. Como questionou  Juliana Borges, intelectual e autora do livro Encarceramento em massa: “Só Black Lives Matter ou Vidas Negras Importam?”, referente ao silêncio diante a morte de Guilherme da Silva Guedes de 15 anos na Vila Clara – São Paulo; ou como também questiona a intelectual  Neon Cunha que diz “Quais vidas negras importam? As cis?”, fazendo referência falta de comoção social frente a morte de Lyanna Dior, mulher trans de 21 anos que foi brutalmente espancada por mais de 30 pessoas no dia 1 de Junho em Minnesota, mesma cidade onde George Floyd foi assassinado.

Junho também foi marcado por comemorações atípicas do mês do orgulho LGBTQIA+ que, em decorrência do Covid-19, obrigou coletivos e organizações a se adaptarem e readequarem a  realização de seus eventos de forma on-line. Esse modelo organizacional, gerou ainda mais exclusões, com a impossibilidade do encontro presencial perde-se o contato com pessoas que têm dificuldades de acesso ao ambiente virtual. Importante informar que apenas 30% da população brasileira tem acesso a internet, então todas as ações e promoções pensadas no ambiente “on-line” a respeito de acesso a direitos e informação, não atende toda a camada população, sobretudo, as mais atingidas pelas desigualdades sociais.

Para Ariadne Ribeiro, pesquisadora, ativista trans e, há um ano, assessora de apoio comunitário da UNAIDS, a pandemia da Covid-19 tem como principais vítimas os mais vulneráveis, como ocorreu com a Aids na década de 1980. “Nesses 40 anos de epidemia de HIV, quem morre de Aids hoje em dia é quem tem uma vulnerabilidade social muito grande. Então, a gente sabe que a COVID-19 também vai ser assim”.

Segundo revela a pesquisa Diagnóstico LGBT+ na pandemia” realizada pelo coletivo Vote LGBT+, pessoas LGBT+s negras estão em situação de vulnerabilidade grave durante a situação causada pela Covid-19, o aumento exponencial de casos de pessoas com sintomas de estresse, crise de pânico, ansiedade e depressão se intensificaram em meio à pandemia. O que nos faz refletir o quão fundamental é direcionar o olhar para a esse grupo reconhecendo as suas especificidades. A pesquisa realizada entre os dias, 28 de abril e 15 de maio, trata dos desafios da comunidade no contexto de isolamento social apontando a piora na saúde mental, o afastamento da rede de apoio e a falta de fonte de renda como os maiores impactos da pandemia em suas vidas.

Ato antiracista dia 7 de junho de 2020. ©Marcelo Rocha

Conversei com Steven Fullwood, arquivista, documentarista e editor nova iorquino trabalha com preservação de materiais de arquivo e coleções com foco nas culturas africana e africana da diáspora falou sobre o fenômeno de “despertar da sociedade” para a questão do racismo – “Por um lado, acho que esse momento, em particular, pode ser caracterizado como um despertar, mas para aqueles que já estão acordados, é um acerto de contas. (…). Se você observar qualquer movimento de resistência ou liberdade nos EUA, Brasil, Paris, Caribe, etc, perceberá que muitos elementos que alimentaram esses momentos particulares (por exemplo, neoliberalismo, misantropia branca, desemprego, sem mencionar o terror e assassinatos sem rodeios) acontecem repetidamente ao longo da história. O que também é verdade, é como alguns passos adiante em direção a direitos plenos de cidadania não podem ser destacados o suficiente. Vou usar o Movimento dos Direitos Civis nos EUA. O uso da não-violência para chamar a atenção para a brutalidade e a desumanidade ocorrendo no sul incomodou muitas pessoas. O mesmo aconteceu com o assassinato de Martin Luther King, Jr. Esses momentos mudaram as pessoas e, posteriormente, as leis e práticas de emprego, etc” – e sobre esperança, Fullwood acrescenta: “A resposta de cada governo ao COVID-19 revelou não apenas as falhas de seus líderes, mas também as possibilidades de melhorar as coisas. É aí que guardo minha esperança; sem ação, é um sonho não realizado. ”

Atuando incansavelmente na posição de deputada estadual, Erica Malunguinho apresentou propostas emergenciais na ALESP desde o início da pandemia, conseguindo com muita luta a gratuidade do “Bom Prato” – restaurantes populares na cidade de São Paulo – para pessoas em situação de rua, e também, a inclusão no auxílio emergencial de mulheres trans e travestis vítimas de violência doméstica. Ao observar seu trabalho, enxergamos a importância de propor candidaturas de pessoas negras LGBTQIA+ comprometidas com a construção de políticas públicas que promovam a equidade social de enfrentamento ao racismo, sexismo, transfobia, xenofobia e outras desigualdades. A vida é um direito que nos é tirado dia-a-dia e, por tanto, nós pessoas negras seguiremos em levante, não somente por paz, mas também por justiça!

Meio a tantas opressões que nos sufoca, é importante destacar as estratégias de respiro que a própria comunidade vem criando com ações autônomas tendo a arte como uma potente ferramenta de aproximação, informação e fortalecimento de vínculos. Algumas ações que destaco são: #AmemEmCasa, programação com ênfase no autocuidado, informação e celebração de vidas pretas realizada pelo Coletivo AMEM – do qual sou idealizador; #AvivamentoPosithivo programação do coletivo Loka de Efavirenz pautando a epidemia da Aids fomentando o debate sobre saúde para além da doença, focando na qualidade de vida e no bem viver através da arte;  #FortaleçaUmaTrans, criada pela deputada estadual Erika Hilton, da Bancada Ativista do PSOL de São Paulo que convida a que todes a olhar com  empatia a real necessidade que as pessoas trans estão enfrentando nesse momento, o projeto apoia ações de: Casa Neon Cunha, Arouchianos, Festival Marsha, Casa Chama, Família Stronger, Casa 1 e Projeto Séforas; e as articulações que comunidade Ballroom global e local gerando cuidados através das houses e usando o voguing como uma forma de protesto. O elixir é ancestral e é no que está em nós que o povo preto em diáspora busca oxigenar suas existências para resistir e viver plenamente.

* Flip Couto é um artista paulistano com formação em dança, atua como performer, curador e produção de eventos, é pesquisador das culturas negras urbanas com enfoque em Cultura Hip Hop e Cultura Ballroom. Bixa preta vivendo abertamente com HIV, ele traz em seus trabalhos discussões sobre negritudes, sexualidades, identidade de gênero, saúde da população negra e epidemia da aids. É idealizador do Coletivo AMEM, grupo de artistas negres LGBTQIA+ realizadores de ações como da Festa Amem, Parada Preta e Ball Vera Verão; como dançarino integra a Cia. Sansacroma, companhia negra de dança contemporânea com sede no Capão Redondo; e na Cultura Ballroom é membro “House Of Zion”, casa cena mainstream da Ballroom e é membro da Aliança pró-saúde da população negra.

Links e referências

http://www.movimentoar.com.br/
https://claudia.abril.com.br/blog/diario-de-uma-quarentener/so-black-lives-matter-ou-vidas-negras-importam/
https://www.instagram.com/loka.de.efavirenz/
https://www.instagram.com/festaamem/
http://fortalecaumapessoatrans.com.br/
https://www.nytimes.com/2020/06/20/style/self-care/vogue-trans-black-lives-protest.html