O Departamento das IST, do HIV/Aids e das Hepatites Virais (DIAHV), que já foi num passado não muito longínquo o Programa Brasileiro de HIV/Aids, morreu no dia 17 de maio de 2019, num decreto do governo que rearranja o organograma do Ministério da Saúde. O Departamento começou a dar sinais de “piora no estado clínico” de 2016 para cá, quando já começou crises de abastecimento de antirretrovirais aqui e acolá, quando fomos derrotados com a aprovação do teto dos gastos públicos para vigorar por vinte anos e depois, em 2017, quando colocaram um fim na destinação especificada de verba, feita através dos blocos de investimentos. Ali mataram a verba carimbada. Mas não era suficiente.
Logo o estado de saúde do departamento começou a piorar consideradamente, e a demissão da Adele Benzaken da diretoria do DIAHV foi quando o departamento foi colocado para respirar sob aparelhos. Ali soou o alerta: a cartilha de prevenção das pessoas trans simplesmente sumiu, e prevenção combinada, direitos humanos, diversidade de gênero e sexual, tudo isso foi substituído pela boa e velha camisinha (mas só para homens héteros, tudo bem?), como se comprovou na campanha de prevenção do Carnaval. Disso para a morte, foi um pulo rápido. Uma canetada, para ser mais específico.
Agora, o que o ministério fez nascer foi o Departamento de Doenças de Condições Crônicas e IST (DDCCI), juntando num grande guarda-chuvas de portinhas departamentais a aids, as ISTs, as hepatites, a tuberculose e a hanseníase. Se eu fosse fazer uma análise do nome deste novo filho, já diria que nasceu com nome errado: tuberculose e hanseníase possuem curas, por mais que possuam tratamentos de longa duração.. A aids ainda não tem cura possível para todo mundo. Resumir tudo isso a “doenças crônicas” é no mínimo incoerente. Mas na verdade, é coerente, sim, mas não para nossas necessidades…
Há uma tendência global de diminuição de recursos para a aids. Já existem tratados e recomendações internacionais que recomendam o acoplamento da tuberculose com a aids nas respectivas pastas de saúde, dos diferentes países, para que a tuberculose pudesse ter mais recursos e não fosse eclipsada, escondida. Acontece que, com o neoliberalismo, os países começaram a utilizar essa recomendação internacional de instituições como a ONU para desmontar descaradamente políticas públicas específicas, num ataque cada vez maior do capital sobre o patrimônio e serviços públicos.
No Brasil, essa tendência mundial de diminuição de recursos para a aids e de desmonte de serviços de saúde para a criação de nichos mercadológicos (onde bancos, com suas seguradoras de saúde, clínicas populares e afins vão lucrar rios de dinheiro ao substituir o SUS) ganha contornos dramáticos. Não esqueçamos que aqui nós temos uma dívida pública não auditada, que na verdade paga dívidas para bancos e corrói quase metade do orçamento da união. Não nos esqueçamos que foi eleito um governo de extrema-direita nesse ano, e que o governo chamou pra essa semana uma manifestação de rua, cuja pauta é fechar as instituições democráticas do país, a saber o Congresso e o Supremo Tribunal Federal.
A invisibilização de um departamento tão importante como o da aids, que foi construído em conjunto com a sociedade civil, os movimentos sociais e a comunidade científica, num exemplo mundial de gestão democrática de epidemias, é um ataque sintomático à gestão participativa e a democracia dentro do SUS. Mais que isso: ao juntar três áreas que antes tinham orçamentos distintos, e que já sofreram duros golpes com o congelamento de gastos por 20 anos e o fim dos blocos de investimentos, o que se fará na prática é a diminuição dos recursos e a invisibilidade das especificidades de cada uma delas. Corre-se o risco ou de a área que melhor se organizar em movimentos sociais conseguir captar mais visibilidade e mais recursos (no caso, notadamente a aids) e as demais se invisibilizarem, causando assim um efeito contrário ao discurso oficial, ou pior: podemos ter as três áreas invisibilizadas, os movimentos sociais das três duramente ignorados ou até reprimidos, e as áreas virarem pálidas salas em algum prédio de Brasília, com parco orçamento.
O próprio presidente da Câmara, Rodrigo Maia, já falou sobre o colapso que o país pode entrar por causa do teto dos gastos públicos. Lógico que ele, em sua necessidade de defender as elites econômicas, atrelou a isso a necessidade da nefasta e cruel reforma da previdência, que também atingirá negativamente a população que vive com HIV/aids, sobretudo as idosas, mas também nós, jovens (não esqueçamos que tem uma jabuticaba na Reforma da Previdência sobre a mudança de distribuição de medicações caras e alterações no Benefício de Prestação Continuada — BPC). Agora eu pergunto: vocês acham mesmo que num colapso orçamentário que se anuncia, que devido ao crescimento irrelevante e ignóbil que teremos economicamente esse ano teremos um teto de gastos públicos baixo, ou seja, orçamento baixo para o próximo ano… vocês acham mesmo que haverá recurso suficiente para três grandes áreas que foram acopladas em apenas uma? Ou será que eles vão tratar como uma única área mesmo, que pode ter “contingenciamento” de verbas?
Gosto de lembrar que, se na educação, o corte de verbas, ou contingenciamento, representa a fome de estudantes, o fim de bolsas nas universidades federais, o fim de pesquisas importante para a cura de doenças como a própria aids ou para as vacinas que tomamos… na saúde o corte de verbas representa morte. Representa ter novas crises de abastecimento de antirretrovirais. Quem nos garante que não vamos começar a ter de novo racionamento de medicação? Pegar remédio só para quinze dias, dividir o frasco para duas pessoas? Quem nos garante que a política errática na prevenção do HIV não fará explodir o número de casos, e o diagnóstico tardio seja um instrumento eficaz para se livrar das pessoas com Aids sem sujar tanto as mãos de sangue, ao menos nas estatísticas?
“Ah, já morreu mesmo, e nem usava camisinha”, dirão alguns. “Mas nem procurou o médico a tempo”, dirão outros. “Mas também, ele nem tomava direito a medicação”, postará algum infeliz energúmeno num grupo de facebook. Mas procurar quem se estamos colocando a aids para debaixo do tapete até mesmo no nome do departamento? Se até nas verbas não haverá mais carimbo para a grande área que a aids pertence? Do que adianta bradar que a junção da aids e da tuberculose vai trabalhar com intersetorialidade — porque aids e tuberculose andam juntas nas mortalidades, tem muita morte em decorrência da aids causada também pela tuberculose — se os principais problemas, que são o político e o econômico, não foram resolvidos?
Achille Mbembe, filósofo camaronês, já vem colocando que a soberania de um Estado neoliberal se funda no poder de morte sobre as populações, e não no poder de vida. O desmonte do SUS é uma forma sofisticada de aumentar a política de morte das populações negra, pobre e LGBTI+ do Brasil, através da total desassistência à saúde, somada ao grande adoecimento provocado pelo saneamento básico deficitário e os bolsões de pobreza cada vez mais frequentes devido ao aumento da desigualdade social. Ademais, com a compra de fuzil podendo ser feita por qualquer um, a tendência é que a lógica de Milícias como poder local, nas periferias, tende a aumentar, e a se somar a já dramática conjuntura de genocídio da população negra e pobre, engendrado pela Polícia e o crime organizado.
Portanto, fiquemos atentas e atentos. Querem nos matar de distintas formas. Não deixaremos! O SUS é nosso, e precisamos mantê-lo, resistir agora é fundamental para poder existir.
* Carlos Henrique de Oliveira é mestrando em Ciências Humanas e Sociais pela UFABC, ativista do Coletivo Loka de Efavirenz, da Rede de Jovens São Paulo Positivo e da Resistência-PSOL.
** Texto publicado na página oficial do Coletivo Loka de Efavirenz.