A pandemia de Covid-19, que já vai se alastrando pelo segundo ano, tem afetado todo o planeta, primeiramente atrelada a grupos específicos – idosos e pessoas com doenças crônicas, mas logo a outras pessoas na medida que foi se expandindo. Economicamente tem afetado muito às populações mais pobres, sobretudo no Brasil e outros países da América Latina, onde a situação de emprego e renda, que já não era boa, piorou muito ainda. Nesse contexto geral as pessoas vivendo com HIV (PVHA) foram atingidas fortemente por diversos fatores, individuais, socioeconômicos, de acesso a serviços, entre outros.
As primeiras informações (bastante confusas) e evidências eram de uma alta taxa de internações e mortes em pessoas com “comorbidades” (doenças crônicas por exemplo), assim as PVH ficaram com muito medo uma vez que podiam ser consideradas com uma alta vulnerabilidade. Esse medo fez com que várias pessoas abandonassem o tratamento e a procura por serviços de saúde. O tratamento para o HIV requer que a pessoa precise realizar deslocamentos, para exames (carga viral e outros) e consultas médicas para conhecer como está o estado clínico, assim como acessar os medicamentos antirretrovirais e outros que possam utilizar. Isso num contexto de alto risco na mobilidade urbana como, por exemplo, o sistema público de transporte lotado, além da exposição em permanecer numa unidade de saúde, nestes tempos de pânico pelo coronavírus.
A situação econômica está sendo outro fator importante que influencia o abandono de tratamento, como relatado acima, a necessidade de deslocamentos envolve custos num momento em que muitas pessoas perderam suas fontes de emprego/renda. O desemprego subiu muito e as economias informais, que representam um alto percentual da renda das pessoas, foram terrivelmente impactadas (como no caso de Salvador, Estado da Bahia, cidade onde moro e atuo). Também os familiares de muitas PVH estão sofrendo as consequências da crise econômica e estão com dificuldades para apoiar nessa situação.
“Ficar em casa” é uma das melhores estratégias para o controle da pandemia da Covid-19, mas essa importante dica não é simples para muitas PVH e outros grupos sociais. Casos relatados por jovens HIV positivos, sobretudo das populações LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e travestis e transexuais) que moravam só ou com amigos, e tiveram que voltar para casa dos pais, por conta de fatores econômicos. Ressaltando que muitas vezes os familiares não sabem da sorologia da pessoa, assim têm que ocultar a medicação e as “saídas” para consultas, o que dificulta a adesão ao tratamento, chegando ao abandono do mesmo.
Outro aspecto que merece um olhar mais atento é a capacidade instalada e de recursos humanos do sistema público de saúde. É amplamente conhecida a pressão que sofreu, e sofre, o sistema público de saúde por conta das demandas da pandemia de Covid-19. Um sistema público que já tinha suas demandas reprimidas antes desta pandemia agora viu-se sobrecarregado e desbordado, deixando de lado outras doenças e problemas de saúde da população. No caso dos serviços de HIV e Aids (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida) de assistência e prevenção, também foram ressentidos. Tomando como exemplo a cidade de Salvador, mas conhecendo também a realidade de outras capitais, dos três serviços municipais de atenção especializada em HIV e Aids – SAE, dois deles apenas tem um infectologista cada um, somados atendem quase 5 mil usuários/as!. O Instituto Couto Maia – ICOM é o hospital de referência para internações por aids do estado da Bahia teve que ser convertido totalmente para atendimento Covid-19, encaminhando todos os pacientes para outra unidade hospitalar (no momento está voltando à sua função anterior à Pandemia). As dificuldades passaram desde atendimento agendado, não presencial, falta de médicos, infectologistas, pessoal administrativo etc. e se mantém até hoje em alguns casos, com uma grande incógnita a ser respondida: se esses serviços serão recompostos em um tempo curto.
Até aqui só falamos de PVH que já estão em tratamento e não das pessoas diagnosticadas recentemente, posto que não disponho de informações dessas últimas, porém posso afirmar que houve a diminuição expressiva de testagem para HIV. Tanto a atenção básica quanto os SAEs registraram uma diminuição na procura ou realização de testes em 2020 e no primeiro semestre de 2021. Com respeito às estratégias de prevenção as iniciativas governamentais (já bastante escassas e pontuais antes da pandemia) ficaram inexistentes durante esse período. As iniciativas das poucas OSC (Organização de Sociedade Civil) ainda atuantes, também sofrem com a falta de recursos e a dificuldade de expor seus voluntários em atividades de prevenção em abordagens educativas com a metodologia de “corpo a corpo”. Outra dificuldade é interagir com as populações mais vulneráveis como jovens, sobretudo gays, bissexuais e trans, uma vez que os locais de encontro e lazer foram fechados e muitos ainda permanecem assim.
Uma importante estratégia de prevenção para populações mais vulneráveis é a PrEP (Profilaxia Pré-exposição) e que vinha sendo implementada lentamente, sobretudo em grandes cidades. Mas, também, esses serviços estão com uma sobre demanda e não conseguem incorporar novos/as usuários/as por falta de profissionais. Face aos gargalos encontrados nos serviços restam as filas de espera pela oferta da PrEP, e pessoas que se confrontam com as barreiras de acesso à estratégia da prevenção combinada, gerando o desencantamento, dúvidas e críticas sobre a real efetividade dessa política pública.
Em meio a tantos problemas, algumas ações importantes e soluções criativas foram implementadas Uma muito importante foi a incidência política das lideranças para incluir todas as PVH na vacinação prioritária para comorbidades e divulgar amplamente essa estratégia nas redes de PVH. Outras inovadoras e importantes são o delivery de autoteste para o HIV implementado pelo GAPA Bahia e o delivery de medicamentos, implementado pelo Barong em São Paulo (para usuários/as do interior do Estado) e pelo GAPA Bahia em Salvador para usuários/as dos SAEs da Capital. Também outras instituições potencializaram os esforços para ajudar economicamente na Pandemia, com arrecadação de alimentos e outros insumos para ajudar nas dificuldades das PVH mais desfavorecidas.
Os problemas são muitos, e não são de fácil solução, a reconstituição da rede de atenção é um trabalho muito grande que demanda um esforço colaborativo entre governos (os três entes federados), ativistas, pessoas que vivem com HIV e Aids, cientistas e organizações da sociedade civil, num contexto político nacional difícil para temas sociais, de saúde pública e de direitos humanos. Assim, se faz necessário pensar já e atuar urgentemente, pois cada pessoa que abandona o tratamento, ou não consegue ter acesso a testagem ou insumos de prevenção, ou não consegue ser vinculada ao serviço de saúde, é uma vida que estamos colocando em risco.
* Javier Angonoa é ativista do movimento Aids há 40 anos, e do movimento LGBT, consultor independente com trabalhos para Unaids, Unicef, GAPA Bahia entre outros.
Contato: ja.consultor@hotmail.com