Quando eu descobri que vivia com HIV, eu me lembro que pensei que ia morrer em quinze dias. Não morri. Fui à procura de ajuda, e a encontrei no movimento social, no Grupo de Incentivo à Vida, e depois no Pela Vidda, nos movimentos de luta contra a Aids e nas Redes de pessoas vivendo com HIV/aids. Depois, veio a eleição de Bolsonaro e pensei que poderia ficar sem medicamentos e morrer… E novamente eu não morri; e além de não morrer, fui eleita parlamentar duas vezes, em diferentes entes federativos (primeiro município, depois estado). Agora, consigo estar viva e vislumbrar a vida (e não a sobrevivência) que possa ser longeva e, sendo única deputada vivendo com HIV/aids do Brasil vos falo agora, vocifero: “Programa Brasileiro de Aids, voltai à Vida, e traga de volta consigo o Ministério da Saúde e toda a sua estrutura destruída por hordas neoliberais e neofascistas!”.
Eu poderia falar da minha (re)eleição como coparlamentar no mandato coletivo da Bancada Feminista, a importância de uma pessoa vivendo com HIV/aids, intersexo, travesti, negra, agrupada com mulheres negras socialistas ocupando uma cadeira na Assembleia Legislativa de São Paulo… Mas meu sangue vermelho não quer falar disso no dezembro vermelho. São muitas vozes que foram abafadas nesses 40 anos de epidemia, e mais 700 mil vozes foram soterradas em valas comuns numa outra pandemia. Não temos tempo a perder, defender e reerguer o SUS é uma emergência, e com a eleição de Lula da Silva precisamos nos mobilizar ativamente para que nossas vidas possam de fato importar, seja exigindo do novo governo, mas também se mobilizando.
Este dezembro vermelho de 2022 está diferente de todos os outros dos últimos quatro anos: não estamos somente nos defendendo de ataques, de xingamentos presidenciais que diziam que Pessoas vivendo com HIV/aids eram gasto, pessoas “promíscuas”, ou enterrando parentes e amigos para a pandemia de Coronavírus. Nesse 1º de dezembro de 2022, dia mundial de luta contra a Aids e o oitavo ano que esta que vos fala vive com HIV, não publico um artigo pra falar sobre a “morte do departamento de aids no Brasil”, como fiz assim que Bolsonaro fechou o antigo DIAHV (Departamento de IST/AIDS e Hepatives Virais) no início de 2019; volto para falar da necessidade e possibilidade de reerguer a resposta brasileira à epidemia de aids.
Mas a nossa luta, a das positHIVas, nunca foi só por nós. Nosso grito agora ecoa, depois de engasgado nesses quatro anos pela incerteza de continuidade do tratamento para HIV, pela total ausência de campanhas de prevenção a Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST) e HIV nos veículos de comunicação, e pelo congelamento dos investimentos em saúde que nos faz estar há 4 anos sem atualização no nosso tratamento… E esse grito pede, também, o retorno da estrutura do Ministério da Saúde que foi destroçada, seja pelo Teto de Gastos Públicos (essa imposição draconiana do mercado financeiro que precisamos derrubar logo), seja pelo bolsonarismo que terminou de cavar a cova da saúde pública brasileira.
Retorna à agenda pública a verdadeira ressuscitação, um “retorno à vida” do Ministério da Saúde e de Programas e Departamentos importantíssimos que foram ou desmontados, ou acoplados arbitrariamente a outras pastas, o que ocasionou uma redução orçamentária sem precedentes. Falo do Programa de Tuberculose, que ainda é, depois da COVID-19, uma das principais causas de mortalidade das Américas e que mata, majoritariamente, a população negra e pobre. Falo daquela antiga forma de repasse, antes do Governo Temer, que tínhamos os blocos de financiamento no SUS, a apelidada “verba carimbada” que repassava os recursos previamente divididos 6 blocos de financiamento: Atenção Básica, Vigiância em Saúde, Alta e Média Complexidade, Gestão do SUS, Assistência Farmacêutica e Investimento (ou seja, os estados e municípios tinham que cumprir orçamentos em todas essas áreas, e a União tinha que prover esses recursos pras seis áreas).
Dei só poucos exemplos daquilo que foi destruído e precisa ser restaurado, mas temos coisas emergenciais também, como a garantia da compra de medicamentos pra HIV e câncer, por conta de indústrias farmacêuticas (essas velhas de guerra, no caso sempre do outro lado, contrário ao nosso) que com suas patentes caríssimas sobre o Dolutegravir e remédios para o câncer tentam impedir legalmente (embora ilegitimamente) que o Ministério da Saúde fabrique seus genéricos ou que compre mais barato. Alguns inimigos, como Bolsonaro, são de quatro anos, mas há velhas de guerra que a gente sempre brigou e teremos de voltar a brigar, e a quebra de patentes retorna à pauta de luta.
E para além de reconstruir aquilo que foi destruído, também queremos ver aquilo que jamais foi visto: precisamos tirar do papel a Política Nacional de Saúde Integral das LGBTI+, a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra, a Política Nacional de Saúde Integral da População Indígena, e todos os outros programas que mesmo instituídos, sempre receberam pouca verba, ou foram descontinuados, ou foram simplesmente desmontados por decretos e canetadas. Além de reconstrução, precisamos do novo para que as vidas de todas, todos e todes nós possam de fato importar!
A luta é árdua, e não será um mar de rosas só porque Lula ganhou. Temos o mercado financeiro, por exemplo, pressionando e chantageando pra impedir a Farmácia Popular de entrar na PEC da transição, e vemos os ricos da Faria Lima dando chiliques pela possibilidade de as pessoas pobres poderem sair da fome com o Bolsa Família. Cabe a nós, nesse cabo de guerra que vai virar o governo Lula 3 puxar do lado de cá, pra que os banqueiros e burgueses não puxem tudo pra eles e imponham um estelionato eleitoral. Nossa parte, como sociedade civil, precisa ser feita através do ativismo, da luta, da mobilização e da cidadania.
E pra isso tudo acontecer, temos uma tarefa primeira, que é garantir a posse de Lula em segurança, sem arruaça de grupos fascistas ou de bloqueio de estradas, e que o bolsonarismo volte de onde nunca deveria ter saído o nazi-fascismo: a lata de lixo da história.
E toda vez que alguém disser que você, que vive com HIV, é menor, é “suja”, é “promíscua”, ou uma “coitada” não se cansem de repetir que “Vidas positHIVas importam” e que o SUS foi construído com nosso suor e sangue… E novamente ele será reerguido com nossa luta, mas com nosso sangue VIVO!
* Carolina Iara é CoDeputada Estadual eleita de São Paulo, pela Bancada Feminista do PSOL, sendo também CoVereadora em exercício da capital paulistana. Mulher intersexo, travesti, negra e pessoa vivendo com HIV/aids.