Imaginem o seguinte cenário: anos 1980, chega o HIV no Brasil, por meio de pessoas que se infectaram no exterior e o Presidente da República e seu governo começam a propagar que “é apenas uma doencinha”. Com o tempo, reúne seus apoiadores e passa a disseminar em viagens e redes sociais informações de que a aspirina em conjunto com inseticida matam o HIV; gasta uma parte enorme da já escassa verba de saúde comprando e distribuindo kits desses compostos e afirmando que não é necessário usar nenhuma proteção nas relações sexuais; não compra e nem distribui preservativos e nem gel lubrificante, muito menos se preocupa em adquirir o AZT ou antirretrovirais, além de não preparar leitos para receber pessoas acometidas pelo desenvolvimento da aids.

Com o tempo, divide a sociedade entre os pró e contra AZT e antirretrovirais e desconsidera os casos da doença, o número de mortes, o desemprego, a perda de renda, a fome, a miséria e o aumento de pessoas morando nas ruas, que se agrava pela crise econômica causada pela conjuntura, sem prestar um apoio social significativo às pessoas que passam por tais situações de vulnerabilidade.

Pois é exatamente isso que estamos vivendo, só que o nome do vírus é SARS-Cov-2, causador da Covid-19 e os tempos são os atuais. De poucos casos introduzidos por pessoas de classe média alta, vindas do exterior, chegamos a mais de 370.000 mortes no país, com projeção de passarmos de 500.000 já no primeiro semestre de 2021, numa pandemia que dura apenas 1 ano e meio, e já depôs mais do que várias guerras registradas pela História.

De 1 caso brasileiro de aids, desde 1980, chegamos a 1.011.617, com 281.156 mortes, incluindo-se aí homens, mulheres, adolescentes e crianças. Esse histórico, embora traumático, não se tornou mais catastrófico devido ao sucesso de várias políticas de prevenção e tratamento ao HIV/aids associadas à Saúde Pública brasileira, que embasaram o planejamento e a execução de suas ações em estudos científicos, iniciativas de intervenção frente às vulnerabilidades de diferentes grupos, até a ampla e gratuita distribuição de preservativos, lubrificantes, orientações de prevenção, tratamento e fornecimento de antirretrovirais, que permitiram não apenas a atenção em saúde dos infectados, a proteção aos mais expostos (com a PEP e a PreP), mas também a desaceleração de novos casos, visto que pessoas que aderem às medicações corretamente se tornam não infectantes.

Outro aspecto fundamental e decisivo, que favoreceu o enfrentamento ao HIV/aids no Brasil, foi a conscientização social, que levou à militância de vários grupos sociais, cobrando e compondo a execução dessas políticas de prevenção e tratamento ao HIV/aids; mobilização que impôs uma participação e controle social necessários ao sucesso de todas as políticas adotadas. Ou seja, a sociedade e seus vários grupos, se indignaram, tornaram-se alertas e atuantes, verificando a urgência da doença.

Hoje, novamente estamos diate de uma pandemia. O covid-19 se alastra frente a um governo genocida, irresponsável, inoperante e anticientífico e está causando mortes em vários seguimentos da população brasileira. E, obviamente, os mais afetados são as populações mais vulneráveis, não apenas as classes mais desfavorecidas socioeconomicamente, mas também vários grupos afetados economicamente pela pandemia: são trabalhadores autônomos(as) ou são remunerados, são pessoas cisgênero e também transgênero, são heteros e também homo e bissexuais, são artistas ou pessoas comuns, trabalhadores(as) do sexo ou não, que atuam de dia ou de noite, pessoas que vivem e convivem com HIV ou não, todos afetados mais intensamente, conforme a vulnerabilidade anterior que já as atingia.

Estamos num momento de, novamente, nos indignarmos, recrutarmos forças, nos reunirmos e mobilizarmos. Momento crucial para a sociedade brasileira, de buscar e propor soluções de saúde pública competentes, de exigir seriedade de governantes e políticos. Conclamamos que todos, grupos, ONGs, fóruns, comitês, comissões e outros espaços discutam e recrutem para a ação unificadora, necessária e inevitável para lidar com a situação do Coronavirus em nosso país; em um só grito: Fora Bolsonaro!

* Regina Figueiredo é socióloga, antropóloga, doutora em Saúde Pública, pesquisadora da Secretaria de Estado da Saúde de São Paulo e Professora de cursos de Saúde e Direitos Sexuais e Reprodutivos.

Contato: reginafigueiredo@uol.com.br