Rodrigo A. T. M. Leal da Silva*

05/04/2016 – Há crença no Direito Penal e no Sistema de Justiça Penal como manifestações do Estado eficazes para fornecer respostas aos mais diversos conflitos sociais, em especial como proteção aos direitos humanos. É, também, uma crença em certa medida confortável, porque transmite uma imediata sensação de segurança, principalmente pelas figuras mais simbólicas desse sistema, como as operações policiais, que são muito mostradas na mídia, bem como as unidades prisionais e a própria imagem das grades.

Nesse sentido, uma das mais recentes demonstrações dessa bem-intencionada crença foi o PL 198/2015, que tem por objeto a criminalização hedionda da conduta de transmissão intencional do vírus HIV. Justificado, conforme sua exposição de motivos, pelas diversas reportagens sobre pessoas que contaminariam outras de propósito, integrando um chamado "Clube do Carimbo", fato é que o PL foi proposto a despeito da ausência de dados oficiais precisos que relacionem diretamente a prática desse clube e o efetivo aumento de contaminação pelo vírus HIV.

Com efeito, a crença no Direito Penal não deve ser uma expressão de fé, mas fruto de um debate racional e científico, em especial pela análise não só de dados concretos da realidade, como também de um conhecimento crítico da própria formação histórica do Direito Penal.

Não se pode ignorar que o Direito Penal, eminentemente punitivo e repressivo que é, carrega consigo limitações próprias: em vez de se prestar a resolver os conflitos sociais e as questões que lhe são trazidas, o Direito Penal tem unicamente a função de punir – sem qualquer atenção dada às vítimas e às parcelas da sociedade que sofram as consequências do ato considerado criminoso.

 Além disso, o Direito Penal tem um imenso poder de estigmatizar, principalmente os acusados da prática de crimes. E, infelizmente, por mais que tenhamos um processo penal justo e com respeito a todas as garantias constitucionais e legais, o estigma é um efeito deletério inevitável, como ensina Howard S. Becker, autor da clássica obra "Outsiders".

Especificamente sobre o PL 198/2015 e o contexto do chamado "Clube do Carimbo", algumas considerações críticas devem ser feitas nesse sentido.

Primeiro, as vítimas desse dito clube são principalmente homens gays infectados em práticas sexuais homossexuais, já discriminados por sua orientação sexual e por práticas sexuais consideradas “desviantes” ou “anormais” por grande parte da sociedade, em especial considerada a recente e crescente onda conservadora. 

Nesse sentido, essas vítimas não buscarão o Sistema de Justiça Penal, pois nele estarão sujeitas a preconceitos e julgamentos morais, já que a vítima, pelo sistema processual vigente, terá que buscar uma Delegacia de Polícia e narrar todo o ocorrido, e, se possível, indicar testemunhas do fato, a serem ouvidas pela autoridade policial. E, novamente, em uma audiência judicial, na presença do juiz, do Ministério Público, e do defensor do acusado, constituído ou público, a vítima dever relatar a desconhecidos a prática sexual que teve, podendo, ainda, vir a ser questionada sobre diversos detalhes íntimos e constrangedores, não por sadismo ou curiosidade do delegado de polícia ou do juiz, mas por serem tais detalhes necessários para a apuração do ocorrido.

A propósito, haverá, inclusive, dificuldade na produção de provas ao longo do processo, porque as testemunhas muito provavelmente também terão receio de sofrer pelo julgamento moral e exposição de sua intimidade, lembrando-se do dever legal da testemunha de não mentir e de responder a todas as perguntais feitas.

Segundo, ao tratar como hedionda a conduta de transmissão intencional do HIV, o PL 198/2015 agrava o processo de estigmatização dos soropositivos,  possibilitando a construção de enorme preconceito no sentido de que toda e qualquer pessoa com HIV/aids, principalmente os homens gays, seria um potencial delinquente que venha a contaminar intencionalmente terceiros.

Aliás, mesmo que hoje o discurso oficial de HIV/aids seja consciente e não discriminatório, fato é que por um longo período de tempo – suficiente para a formação de opinião de mais de uma geração – predominou um discurso moralista, de culpabilização e de segregação de uma doença anunciada como restrita a grupos socialmente marginalizados, com maior agressividade simbólica para os homens gays. A estigmatização em torno das pessoas que vivem com HIV/aids deve ser compreendida à luz da própria marginalidade da homossexualidade e da heterossexualidade como “normal”, verdadeiras regras morais anteriores ao aparecimento da doença —  por isso, o PL 198/2015 acabaria por aumentar o estigma e a discriminação.

A conclusão é de que o PL 198/2015 e a criminalização hedionda da conduta de transmissão intencional do vírus HIV não significa maior proteção às pessoas contra a contaminação intencional pelo vírus HIV, e, pior, implica, em algum grau, uma maior vulnerabilidade das pessoas soropositivas e maior violação dos seus direitos humanos, pela amplificação do preconceito, da discriminação e do estigma.

* Rodrigo A. T. M. Leal da Silva é defensor público do Estado de São Paulo, colaborador do Núcleo Especializado de Combate a Discriminação, Racismo e Preconceito da Defensoria Pública do Estado de São Paulo. Graduado em direito pela Universidade de São Paulo e pós-graduado em Serviço Social pelas Faculdades Metropolitanas Unidas – FMU.