Como diversos governos já reconhecem, a pandemia da Covid-19 explicitou ainda mais os problemas estruturais na América Latina e Caribe, decorrentes dos modelos políticos e econômicos adotados.  Por isso, além de cobrar a intensificação de esforços e investimentos para salvar vidas, o momento demanda também maior engajamento das organizações e do movimento aids na intensa disputa sobre qual potencial novo estado de bem-estar social na região é necessário para responder à pandemia e suas consequências.

Desde fevereiro a sociedade civil tem sido convocada a construir novas capacidades e formas de intervenção frente à Covid-19,  com base na experiência de décadas enfrentando o HIV. Este artigo é um convite para irmos além, refletindo sobre nosso papel na construção da repactuação social e econômica que o “novo normal” nos demanda. E temos que pensar e agir ao mesmo tempo pois o futuro da região, já se sabe, será ainda mais desafiador. Segundo a CEPAL a média do produto interno bruto, PIB, da América Latina cairá mais que 5%, a pobreza chegará a 13.5% da população, teremos 30 milhões a mais de pessoas pobres e mais 16 milhões de em situação de pobreza extrema. Ou seja, éramos antes da pandemia a região mais desigual do planeta e vamos continuar a sê-lo, só que agora com piores indicadores.

É certo que mesmo tanto acúmulo enfrentando o HIV não nos preparou para lidar com uma emergência como a Covid-19 porque, afinal, ninguém e nenhum movimento no mundo foi preparado para isso. Mas nossa experiência no controle social e em formular respostas comunitárias que resultaram em políticas públicas colocando populações e ativistas no centro das decisões governamentais sobre aids, saúde e direitos sexuais permite nos reposicionarmos como movimento, com maior presença e propostas na formulação desse novo cenário mundial.

A Covid-19, sabemos,  não ‘apenas’ impactou os sistemas de saúde, mas praticamente mexeu em todas as áreas essenciais que afetam o cotidiano das pessoas afetadas pelo HIV ou mais vulneráveis. Tocando em questões sociais, econômicas e ambientais, ela tornou a América Latina e Caribe ainda mais distantes de alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.  Se a sociedade civil progressista não se unir e as tendências projetadas para a região  não forem ao menos minimizadas, tudo o que construímos para responder ao HIV estará sob ameaça desse “novo normal” que,  como disse Alicia Barcenas, diretora da Cepal, além de ser mais desigual e ter mais fome,  terá ainda mais pessoas com mais raiva.

Com a América Latina tornando-se o epicentro da vez, as respostas à Covid-19 entre os países variam, com a Argentina, Uruguai e Costa Rica se destacando positivamente. Mas se pode esquecer que 2019 teve a marca das manifestações populares e que, se a situação econômica e política era intranquila no Equador, Peru, Chile, Bolívia, Colômbia, Haiti e Nicarágua (lista que se amplia com a inclusão do Brasil), ela piorou. O novo coronavírus, por exemplo,  acirrou a crise entre Venezuela e Colômbia, estressou a relação entre El Salvador e México e, se por um lado, ele desestimula os protestos nas ruas, por outro agudiza a exigência por soluções.

A necessidade de um movimento aids mais conectado com os temas das desigualdades socioeconômicas – que vá além da tradicional agenda da saúde e dos direitos sexuais – está posta. Ela ficou evidente na Consulta Regional sobre Políticas de Prevenção e a Atenção ao HIV, Seguridade Social e Covid-19 e na Perspectiva da Sociedade Civil, realizada final de maio sob coordenação da Fundação Kimirina, da Plataforma das Américas e Caribe e da ITPC-LACTA.

A Costa Rica e os países do Caribe, segundo as exposições, seguem mantendo os mesmos serviços relacionados ao HIV, mas é óbvia a debilidade dos sistemas de saúde nos demais países que, para atender à alta demanda da Covid-19, estão com a maioria dos serviços para HIV suspensos, apesar da recomendação da Unaids de que a disponibilização de preservativos,  redução de danos,  profilaxia pré-exposição e  testagem de HIV, entre outros meios de prevenção combinada, deveriam ser mantidos. Além disso, nem todos os países conseguiram disponibilizar as quantidades de antirretrovirais, ARVs, para suprir os três meses de tratamento: pesquisa regional da Unaids com 2.500 pessoas soropositivas, a ser publicada em breve, indica que só cerca de 30% delas estão com estoque para mais de 2 meses.

A não descentralização de serviços de saúde para entrega de medicamentos e testagem também tem sido uma barreira, principalmente na fase mais rígida de quarentena, não apenas pelas restrições de transportes como também pela falta dinheiro para o deslocamento. A situação fica ainda mais desafiadora quando ao tratamento do HIV somam-se outras demandas, como no caso das pessoas trans para quem os serviços dispensatórios (quando existentes) de terapias hormonais não são considerados essenciais no contexto da pandemia da Covid-19.

Sem testes, remédios ou vacina contra a Covid-19, para além das questões da saúde, tem sido difícil praticar o distanciamento social sem acesso à meios de comunicação e internet estável, quando falta alimentos e sem seguridade social e a nossa região tem exemplos de situações extremas. Na Argentina, mesmo em concordata, as pessoas terão acesso a dois salários mínimos mensais durante a quarentena  enquanto no Brasil, ONGs como a Gestos têm que assumir a responsabilidade de garantir segurança alimentar básica para as pessoas que atende.  Faz todo sentido portanto, que depois do acesso à ARVs e à saúde mental, as maiores preocupações das pessoas que vivem com HIV e AIDS são conseguir alimentos, salário e proteção social, segundo indica a pesquisa da Unaids.

Como em todos os países, com raras exceções, os determinantes sociais e econômicos são barreiras para enfrentar a pandemia e a pandemia, por sua vez, debilitou ainda mais as áreas onde atuávamos, necessitamos articulações mais densas com movimentos diversos, particularmente os que atuam nas agendas socioeconômicas. Eles podem nos apoiar nos campos de saúde, equidade de gênero e fim de violências e nós podemos ajudá-los a enfrentar o contexto de limitado espaço fiscal, de informalidade e precarização nas relações de trabalho, de sistemas de proteção social insuficientes que precisam de urgente revisão.

Enfrentar tantas desigualdades, sabemos, não pode depender do grau de responsabilidade de governos irresponsáveis que insistem na falsa dicotomia entre salvar vidas ou negócios. É preciso construir alianças e pensar de forma solidária.

As organizações do movimento aids já sabem como atuar de forma crítica-propositiva e como fomentar políticas que colocam os direitos e as pessoas no centro das soluções. Agora, para ajudar a superar a Covid-19, precisamos traduzir essa experiência em parcerias em prol de novos paradigmas de desenvolvimento, dando um passo além na nossa histórica luta por justiça social e igualdades, por sociedades livres do estigma ou discriminação de qualquer forma, que tenham a participação social  e o uso das evidências, entre seus eixos estruturadores.

BOX:

Frente a pandemia da Covid-19 a implementação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável são ainda mais urgentes. A Gestos acompanhou todo o debate que resultou na Agenda 2030 de desenvolvimento e participa em vários espaços nacionais, regionais e internacionais de monitoramento dos ODS. E com o objetivo de fomentar a maior participação do movimento aids nessas instâncias, inicia hoje uma série de três seminários preparatórios para a sociedade civil, com apoio da Unaids região LAC e em parceria com Correspondentes Claves.

Eles são abertos e ocorrerão nos dias 2, 16 e 30 de Junho, sempre às 16h, horário de Brasília.  O link para registro é esse: https://tinyurl.com/SIDACovidDesarrollo

 

* Alessandra Nilo é jornalista especializada em comunicação e saúde e pós graduada em Diplomacia e Comércio Internacional. É co-fundadora e coordenadora geral da Gestos–Soropositividade, Comunicação e Gênero.

 

https://unaids.org.br/2020/04/o-que-as-pessoas-que-vivem-com-hiv-precisam-saber-sobre-hiv-e-covid-19/