Desde 1998 que estou como advogada do serviço de assessoria jurídica gratuita e especializada em Direitos Humanos para pessoas vivendo com HIV/Aids da ONG Gestos – Soropositividade, Comunicação e Gênero. Ao longo desses anos, houve diversos avanços científicos que possibilitaram o surgimento de antirretrovirais de última geração, que melhoraram a condição de saúde das pessoas vivendo com HIV e Aids (PVHA); medicamentos que são garantidos pelo Sistema Único de Saúde.
Entretanto, independentemente desses avanços, nos atendimentos às PVHAs que realizo na Gestos, constato diariamente a vulnerabilidade dessas pessoas, não apenas causadas pelo estigma e pelo preconceito que elas enfrentam no mercado de trabalho, nas suas comunidades e, inclusive, dentro de suas próprias casas, mas também pelas desigualdades estruturais e socioeconômicas que foram agravadas pelas frequentes cessações realizadas pelo INSS nos benefícios assistenciais e previdenciários das PVHAs sem a devida análise social e de saúde; pelo retrocesso das políticas públicas de Aids (a exemplo do desmonte do Departamento responsável pela resposta à epidemia do HIV/Aids); pela pandemia da Covid-19; pelo crescimento da inflação e o empobrecimento da população, além dos aumentos recorrentes das passagens no transporte coletivo.
Tais situações contribuem para o abandono do tratamento, adoecimentos (físico e mental) e mortes. Segundo Boletim Epidemiológico em HIV e Aids 2021, do Ministério da Saúde, Recife é a 4ª capital do NE com maior coeficiente de mortalidade por Aids. Esse cenário piora cada vez que alguém não pode buscar seus medicamentos, realizar exames, ou ir a uma consulta por não ter dinheiro para pagar passagens de ônibus, circunstância que compromete o tratamento, possibilitando assim, co-infecções por doenças oportunistas (como a tuberculose), bem como novas infecções pelo HIV, uma vez que, nessas condições torna-se difícil alcançar o estágio de “Indetectável” e “Intransmissível”.
Organizações como a RNP+, a Articulação Aids de PE e a Gestos vêm lutando há cerca de 15 anos junto ao Legislativo pela implementação do Passe Livre para pessoas de baixa renda vivendo com HIV/Aids, demanda essa, que ainda não foi atendida devido à falta de compromisso político das gestões anteriores com as PVHAs – ferindo assim direitos fundamentais previstos em nossa Constituição Federal, como o direito à vida, à dignidade, à saúde e ao transporte! Mas, parece que esse contexto tem apresentado avanços. Junto ao Judiciário, temos garantido esse direito para pessoas vivendo com HIV e Aids, através de ações ajuizadas pela assessoria jurídica da Gestos. Somente nos últimos dois anos, obtivemos mais de 10 decisões judiciais favoráveis.
Contudo, é no Legislativo, mais precisamente na Câmara de Vereadores do Recife, onde está acontecendo uma ampla discussão sobre o tema. Nesse momento, está tramitando o Projeto de Lei Ordinária (PLO) 370/2021, que busca estabelecer o Passe Livre para PVHAs de baixa renda vivendo no Recife. O projeto tem se mostrado perfeitamente possível e aplicável na capital pernambucana e já foi aprovado pelas comissões de Saúde, de Direitos Humanos e Cidadania e de Acessibilidade e Mobilidade Urbana. Agora, ele aguarda o parecer da Comissão de Legislação e Justiça e, caso aprovado, se encaminhará para a Comissão de Finanças e Orçamento, para então seguir para votação no pleno da Câmara dos Vereadores.
O Recife está tendo a oportunidade de tornar real aquilo que não foi feito nos últimos 15 anos: construir uma resposta ao HIV que seja multidisciplinar e compreenda a questão também de um ponto de vista socioeconômico, que garanta a continuidade do tratamento, promovendo assim o bem-estar social de grupos diariamente invisibilizados e estigmatizados, bem como a diminuição de novas infecções na cidade. Para nós, da sociedade civil organizada, esse PLO pode ser uma nova oportunidade para demonstrar o compromisso, ou o descaso dos nossos e das nossas representantes com a dignidade de quem mais precisa do Estado. Esperamos que tomem a decisão certa quando chegar a hora!
* Kariana Guérios é advogada e Assessora Jurídica da ONG Gestos – Soropositividade, Comunicação e Gênero.
** Artigo publicado originalmente no jornal Diário de Pernambuco.