Em entrevista exclusiva à Agência Aids, a psicóloga Vera Paiva, professora titular de Psicologia Social no Instituto de Psicologia da USP e coordenadora do Nepaids (Núcleo de Estudos para Prevenção da Aids), abordou as consequências e os desafios enfrentados por pacientes que contraíram HIV após transplantes de órgãos no Rio de Janeiro. Paiva destacou que o impacto dessas infecções inesperadas é semelhante ao de receber um diagnóstico de HIV, agravado pelas circunstâncias complexas e pela violação de direitos humanos básicos. Além disso, ela chamou a atenção para a importância do apoio coletivo no enfrentamento do trauma, ressaltando as falhas estruturais e os retrocessos no sistema de saúde pública brasileiro. Confira:

Agência Aids: Como a senhora vê o processo de receber o diagnóstico de HIV?

Vera Paiva: Receber o diagnóstico de HIV envolve passar por várias fases. Esse processo exige apoio constante e não é algo que se resolve em uma consulta, com medicação ou com uma intervenção individual. O apoio em grupo é muito importante, especialmente para compartilhar a experiência de viver com HIV e enfrentar as complexidades da condição.

Agência Aids: E no caso específico que estamos discutindo, onde pacientes de transplante receberam órgãos infectados com HIV, qual é o impacto adicional?

Vera Paiva: Neste caso, há um agravante: o desleixo com os direitos humanos, a saúde e a vida das pessoas. É uma situação que apresenta várias camadas de questões a serem processadas. O ideal é que esse enfrentamento não seja feito de forma individual, mas coletiva. As pessoas precisam entender que estão vivendo uma violação de direitos básicos. A luta por direitos pode começar com um caso, e torna-se muito mais eficaz quando mobiliza a solidariedade de pessoas na mesma condição e produz um movimento que marca a relevância para todos os brasileiros. Essa é parte da história da resposta brasileira à aids!

Agência Aids: Quais direitos estão sendo violados, na sua visão?

Vera Paiva: O acesso a sangue não infectado é garantido pela Constituição brasileira duplamente: direito à saúde e além disso, a luta contra a comercialização de sangue não deveria ser um debate, como está sendo. A não comercialização do sangue foi tão importante que é constitucional. Infelizmente, com o avanço de interesses privatistas, tudo vira negócio, e as consequências para a saúde pública são ignoradas.

Agência Aids: A senhora mencionou que o Brasil foi referência mundial no tratamento de HIV/aids. Como isso se relaciona com o caso que estamos discutindo?

Vera Paiva: Exato. O Brasil ainda não deixou de ser uma referência mundial em programas bem sucedidos de HIV/aids e também no transplante de órgãos por meio do SUS. Oferecemos o direito universal à saúde, ao diagnóstico, ao tratamento e ao acolhimento. No entanto, governos recentes que defendem a saúde pública integrada a interesses privados sem controle ou adotam uma postura negacionista em relação aos dados acumulados ao longo de 40 anos de pesquisa têm negligenciado essas políticas cujas referências estruturantes estão garantidas na constitução .

Agência Aids: Como a senhora vê o impacto da terceirização de serviços de saúde, como no caso do Rio de Janeiro?

Vera Paiva: A precarização do Estado compromete sua capacidade de fiscalizar. Quando se terceiriza serviços sem controle, como aconteceu nesse caso, vemos o desmonte da saúde pública. No Rio de Janeiro, historicamente, sempre houve problemas com fraudes em licitações e até assassinatos de diretores de hospitais que tentavam controlar a terceirização para entes privados a ofertas de serviços (como exames) , sempre com indícios de corrupção.

Agência Aids: A privatização da saúde pública tem sido vendida como uma solução. A senhora concorda com isso?

Vera Paiva: Não, isso é uma ilusão. A desigualdade no Brasil deixaria de fora do acesso universal e gratuito à saúde integral de qualidade milhões de brasileiros. A gestão público-privada depende de controle de qualidade O controle público depende de investimento governamental, e isso tem sido negligenciado nos últimos anos. Reconstruir o que foi destruído levará muito tempo, especialmente após quase uma década de desmonte, como vimos radicalizado no governo Bolsonaro.

Agência Aids: E no que diz respeito ao acolhimento dos pacientes que agora vivem com HIV, o que a senhora sugere?

Vera Paiva: Temos décadas de saber técnico acumulado nos programas de aids. O atendimento não pode ser individualizado apenas. É necessário garantir um suporte em grupo, especialmente para aqueles que viveram uma violação de direitos tão grave. Sabemos que compartilhar essas experiências em grupo ajuda a lidar com o que aconteceu e a seguir em frente. Além disso, estar em grupo reivindicando a reparação por essas violações também tem um efeito curativo.

Agência Aids: A senhora acredita que além do atendimento individualizado algo mais seria necessário ?

Vera Paiva: Sim, existem evidências técnico-científicas que mostram que o apoio coletivo, de outras pessoas pelo mesmo evento e trauma, acelera a recuperação e o processo de acolhimento e acelera a reparação psicológica de um trauma desse tipo que envolve tanto a infecção pelo HIV – uma nova experiência de ameaça de adoecimento que se soma a condição que colocou essas pessoas na fila do transplante, a experiência viva de ser transplantado – como a violação de um direito garantido especificamente na constituição que fala da comercialização do sangue. O acolhimento, portanto, é psicossocial e não pode ser apenas individualizado e medicalizado. O suporte coletivo é essencial para ajudar as pessoas a enfrentar o sofrimento duplo de descobrir que viverá com HIV em meio a recuperação de um transplante e lidar com a violação explícita de seus direitos.

Talita Martins (talita@agenciaaids.com.br)

Dica de entrevista

Vera Paiva

E-mail: veroca@usp.br