Seis pacientes contraíram HIV após transplantes de órgãos no Rio de Janeiro, um caso que causou grande impacto na comunidade médica. Em entrevista à Agência Aids, o infectologista Ricardo Diaz, professor e pesquisador da Escola Paulista de Medicina da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), destacou que os protocolos de segurança, quando seguidos corretamente, tornam a transmissão de patógenos como o HIV praticamente impossível. “Foi uma surpresa, porque isso é algo que não deveria ter acontecido se todos os procedimentos tivessem sido seguidos corretamente.”

As falhas, atribuídas ao Laboratório Patologia Clínica Doutor Saleme, levantam dúvidas sobre a segurança nos transplantes e ressaltam a importância de reforçar a fiscalização no cumprimento rigoroso das normas sanitárias.

Apesar do incidente, Dr. Ricardo, que é um pesquisador amplamente reconhecido internacionalmente por suas contribuições no campo da pesquisa sobre HIV/aids, incluindo pesquisas sobre cura, reforça que a doação de órgãos é essencial para salvar vidas. Ele também lembrou que o Sistema Nacional de Transplantes, garantido pelo SUS, é o maior programa público de transplante de órgãos, tecidos e células do mundo, responsável por cerca de 88% dos transplantes no país, segundo o Ministério da Saúde.

Confira a entrevista a seguir:

Agência Aids: Seis pessoas contraíram HIV após receberem transplantes de órgãos no Rio de Janeiro. Qual foi a sua reação ao tomar conhecimento desse fato?

Dr. Ricardo Diaz: Foi uma surpresa, porque isso é algo que não deveria ter acontecido se todos os procedimentos tivessem sido seguidos corretamente. O processo de transplante deve ser seguro no que diz respeito à transmissão de patógenos infecciosos. Existe todo um protocolo para minimizar o risco disso ocorrer. Isso é comparável à transmissão de patógenos por transfusão de sangue, algo que também não deve acontecer. Se os procedimentos forem seguidos rigorosamente, a chance de transmissão de patógenos deve ser praticamente zero, a menos que haja algum erro ou falha no cumprimento dos protocolos operacionais.

Agência Aids: Considerando que o HIV não sobrevive muito tempo fora do corpo, por que o vírus não foi eliminado durante o processo de transplante?

Dr. Ricardo Diaz: O transplante pressupõe que o órgão esteja vivo, o que mantém suas células viáveis e, consequentemente, qualquer patógeno também permanece viável dentro do órgão. Quando falamos de órgãos como rins ou fígado, o doador pode não ser uma pessoa vivendo com HIV, mas se o vírus estiver presente, ele permanecerá viável nas células do órgão.

Agência Aids: Se o doador estivesse na janela imunológica, ainda assim seria possível detectar o HIV?

Dr. Ricardo Diaz: Deixe-me explicar como funciona a janela imunológica. É o período entre a infecção pelo HIV e o início da produção de anticorpos e antígenos detectáveis. Antes desse período, os testes sorológicos comuns, que detectam anticorpos e o antígeno P24, não conseguem identificar o HIV. No entanto, após cerca de 5 a 14 dias da infecção, o vírus pode ser detectado através de testes de ácido nucleico (NAT), que são usados em bancos de sangue e para doadores de órgãos. Contudo, existe um período chamado “eclipse”, que é o momento logo após a infecção, quando o vírus ainda não se multiplicou o suficiente para ser detectado por qualquer teste. A boa notícia é que, nesse período, o risco de transmissão é praticamente inexistente.

Agência Aids: Um dos pacientes recebeu uma córnea do doador infectado, mas não testou positivo para o HIV. O que poderia explicar essa diferença?

Dr. Ricardo Diaz: Isso ocorre porque a córnea não possui vasos sanguíneos. O HIV se aloja principalmente nas células do sangue, como os linfócitos, e no plasma, onde o vírus circula. Como a córnea não é irrigada por sangue, a chance de o HIV estar presente nela é muito baixa. Por isso, o risco de transmissão via transplante de córnea é consideravelmente menor.

Agência Aids: Pensando no conceito de “indetectável = intransmissível”, qual é a chance de um paciente vivendo com HIV transmitir o vírus via transplante, se sua carga viral for indetectável?

Dr. Ricardo Diaz: Não sabemos ao certo. O conceito de “indetectável = intransmissível” aplica-se à transmissão sexual. Sabemos com certeza absoluta que uma pessoa com carga viral indetectável não transmite o vírus sexualmente. No entanto, essa certeza não se estende a outros contextos, como transfusões de sangue ou doação de órgãos. Há um caso na África do Sul em que uma mãe vivendo com HIV doou parte do fígado para a filha, e a filha não contraiu o vírus, mas é um caso isolado. Portanto, como não temos certeza sobre o risco de transmissão em transplantes, evitamos correr esse risco, mesmo que a carga viral esteja indetectável.

Agência Aids: Atualmente, a orientação é que pessoas vivendo com HIV não podem doar órgãos, sangue ou tecidos?

Dr. Ricardo Diaz: Exato. A única coisa que uma pessoa vivendo com HIV não pode fazer é doar sangue ou órgãos. Mesmo que doe, o material será descartado. Esse é um dos poucos aspectos em que a condição de viver com HIV impõe uma restrição.

Agência Aids: O governo do estado do Rio de Janeiro informou que os pacientes infectados estão recebendo suporte clínico e psicológico. Em sua opinião, o que mais poderia ser feito para acolher melhor essas pessoas recém-diagnosticadas com HIV?

Dr. Ricardo Diaz: Ninguém tem culpa da existência do HIV, e o suporte clínico e psicológico são essenciais, especialmente porque esses pacientes já estão imunossuprimidos devido ao transplante. Eles precisam ser tratados o mais rapidamente possível. Além disso, é fundamental oferecer apoio psicológico e ajudar esses pacientes a lidar com o futuro. Precisamos mostrar que é possível viver uma vida normal, apesar desse contratempo. Essa não é a primeira vez que a transmissão de HIV por transplante ocorre, mas, se todos os procedimentos forem seguidos corretamente, o risco deve ser zero.

Agência Aids: Sabemos que os pacientes que recebem órgãos estão geralmente imunossuprimidos. Aqueles que receberam um órgão infectado com o HIV podem desenvolver aids mais rapidamente?

Dr. Ricardo Diaz: A progressão pode, de fato, ser mais rápida. Os receptores de órgãos precisam tomar medicamentos que suprimem seu sistema imunológico para evitar a rejeição do transplante. Essa supressão imunológica facilita a replicação do HIV, já que o corpo não consegue combatê-lo naturalmente. Por isso, é crucial iniciar o tratamento antirretroviral o quanto antes, para ajudar a controlar o vírus.

Agência Aids: As investigações apontam que a falha ocorreu em um laboratório terceirizado pela Secretaria Estadual de Saúde, a Patologia Clínica Doutor Saleme. O senhor acredita que a terceirização enfraquece o Sistema Único de Saúde (SUS)?

Dr. Ricardo Diaz: Eu acredito que a terceirização é uma ferramenta que pode ajudar, desde que seja feita corretamente. O problema não é a terceirização em si, mas a fragilidade no processo que permitiu que isso acontecesse. Desastres como esse podem ocorrer em qualquer sistema, seja público, especializado ou terceirizado. O mais importante é garantir que os procedimentos sejam seguidos rigorosamente e que o prestador terceirizado tenha a capacidade técnica necessária para executar os serviços. A responsabilidade do Estado é assegurar que isso aconteça.

Agência Aids: Com toda a sua vasta experiência no combate à aids e em crises relacionadas ao HIV, como podemos, como profissionais de comunicação, informar o público de maneira mais humanizada, evitando gerar pânico?

Dr. Ricardo Diaz: Acho que o principal é deixar claro que o que aconteceu foi um evento excepcional e que poderia ter sido evitado. Nosso esforço deve ser informar a sociedade de forma transparente e tranquilizadora, mostrando que as autoridades estão monitorando e revisando os procedimentos para garantir que isso não se repita. A doação de órgãos é algo que deve ser encorajada, e o controle de riscos deve ser sempre rigoroso.

Agência Aids: Que mensagem o senhor gostaria de deixar para aqueles que estão na fila de transplante e podem estar preocupados com essa notícia?

Dr. Ricardo Diaz: Precisamos tranquilizar a população e lembrar que a doação de órgãos é fundamental para salvar vidas. As pessoas não devem ter medo de receber um órgão, pois o transplante melhora a qualidade e aumenta a expectativa de vida. O que aconteceu foi um evento que não deve se repetir. Com os procedimentos de segurança, o risco de transmissão de patógenos, como o HIV, é extremamente baixo.

Talita Martins (talita@agenciaaids.com.br)

Leia também: 

Sócio de laboratório suspeito de emitir laudos que resultaram em transplantes de órgãos com HIV é preso

Sócio do Laboratório PCS Saleme, suspeito de emitir laudos falsos de pacientes infectados por HIV é preso na manhã desta segunda-feira (14)

Ativistas comentam caso dos transplantes no Rio de Janeiro: “Inadmissível; o impacto desse incidente é significativo!”

Ministra da Saúde Nísia Trindade garante que Governo prestará total apoio e assistência na investigação de seis pacientes infectados por HIV transplantados no Rio

Cerca de 38% das famílias brasileiras se recusaram a doar órgãos em 2021 | Brasil 61

Seis pacientes são infectados com HIV após transplantes no Rio de Janeiro; Secretaria de Saúde investiga o caso; médicos esclarecem o ocorrido

Dica de entrevista

Unifesp – Assessoria de Imprensa

Tel.: (11) 3266-6088, ramais 201 / 208 / 225
E-mail: imprensa@unifesp.br