Foi com muita indignação, que nós fomos surpreendidos, na verdade, nem tão surpreendidos assim, que lemos as notícias sobre os casos de HIV, em consequência de mal controle do sangue transfundido no Rio de Janeiro. Essa notícia nos causa muita tristeza e indignação. Desde o ano passado nós da Abia, assim como outras organizações da Sociedade Civil brasileira, estamos chamando atenção para o desmonte que pode estar acontecendo com relação ao controle do sangue transfundido no Brasil. Não apenas na questão do controle do sangue transfundido no Brasil. Como todos sabem, o Brasil tem uma lei chamada lei Henfil e uma constituição que proíbe a comercialização do sangue, coloca o sangue como responsabilidade do Estado e obriga a que sejam realizados todos os controles necessários, incluindo a testagem para o HIV para que não haja transmissão de doenças via transmissão sanguínea.
Isso foi uma grande conquista do povo brasileiro sob a liderança do Betinho e de seus irmãos, ainda na década de 80. Significou, também, foi um dos termômetros, vamos dizer assim, um dos marcos que refletiu toda uma reorganização da saúde pública brasileira, a chamada reforma sanitária, que culminou na instalação, implementação do SUS a partir da lei 8080, de 1990. Então, a partir dessa lei e dessa vitória, nós alcançamos outras grandes vitórias, inclusive uma queda drástica, uma queda profunda na transmissão de HIV, por transfusão de sangue no Brasil, chegando a níveis insignificantes. No ano passado, fomos surpreendidos por uma movimentação no Congresso brasileiro de propor uma PEC, uma proposta de emenda constitucional chamada PEC 10\2022, que propõe a flexibilização dessa lei, da lei do sangue, chamada lei em fio, e que através dessa PEC, caso aprovada, nós poderíamos voltar, o Brasil poderia voltar a comercializar produtos hemoderivados. Nós, da sociedade civil, várias entidades, entendemos que essa PEC coloca em ameaça a Lei Henfil. Ela poderá favorecer o descontrole da transfusão sanguínea por parte do Estado. Esse próprio acontecimento aponta, desde o ano passado, o desmonte desse controle por parte do Estado.
O fato de estarem propondo essa lei essa mudança na Constituição, no Congresso e com uma grande aprovação, em princípio dos nossos parlamentares, claro sabemos dos lobbys de empresas, indústrias no ramo da saúde que querem voltar a comercialização do sangue. Nós vemos essa movimentação toda como já um sintoma para a volta desses vampiros que tanto atormentaram nos anos 80.
Que a volta desses vampiros propondo essa mudança e já como um sintoma desse desmonte, de uma tentativa de desmonte. Por isso, quase que não nos surpreende, mas nos indigna a notícia dessa semana sobre as infecções de HIV via transfusão sanguínea. Acho que elas só confirmam o que nós já suspeitávamos no ano passado de que isso poderia acontecer. Foram várias notas escritas, foram denúncias, o próprio artigo do professor Richard Parker, presidente da ABIA. No último boletim, no final do ano passado, na edição do nosso último boletim, traz inclusive um histórico das lutas do povo brasileiro para o controle do sangue e que agora estão ameaçadas numa tentativa de resgatar essa memória e não repetir o passado, coisa que nós agora parece que já começamos a repetir. Eu acho que essas notícias dessa semana, esses trágicos acontecimentos e infecções pelo HIV que poderiam ser evitados, são uma alerta já, um sinal vermelho sobre o que está acontecendo e para que a sociedade brasileira reaja a essas tentativas, conheça a sua história e não repita o passado.
Essa eu acho que é a mensagem que precisamos passar nesse momento, o Estado precisa ser responsabilizado e todos aqueles que têm interesse em comercializar sangue, em afrouxar, em flexibilizar os critérios de controle, que insistem na privatização, que sejam denunciados, que sejam barrados dessa discussão, porque ela só vai significar mais tragédia, mudanças na PEC, na Constituição, mudanças na lei, privatização do sangue, só vai significar mais tragédia, mais infecções, mais sofrimento. Então, eu espero que seja um alerta e que o Estado puna os responsáveis e cumpra com a sua obrigação que está determinada pela constituição .É um chamamento também para que as pessoas conheçam a história, conheçam a memória e evitem a repetição desses crimes.
* VerianoTerto é vice-presidente da ABIA (Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids)