Appadurai, um antropólogo indiano-estadunidense, em seu conceito de “imaginários globais”, oferece uma perspectiva valiosa para analisar como as juventudes visualizam e participam da política de forma inovadora e transnacional. Esse enfoque é especialmente relevante para compreender a importância de que as juventudes estejam presentes na construção de agendas que atendam às suas necessidades e reflitam suas realidades territoriais, multiculturais e interseccionais. Além disso, destaca a necessidade de reconhecer as diversas formas como os jovens realizam incidência política, seja em seus territórios, através de redes sociais ou em espaços legislativos. Essa participação é essencial para garantir que as políticas e decisões reflitam verdadeiramente as vozes e perspectivas das novas gerações. A participação das juventudes em espaços de incidência política, como a Conferência Global sobre HIV/AIDS, é de vital importância. Por que é crucial que nesses eventos exista um espaço dedicado e liderado por jovens de todo o mundo? Desde 1984, as Conferências Globais sobre HIV/AIDS marcaram marcos na resposta internacional à pandemia. No entanto, surge uma questão fundamental: quão considerada foi a participação das juventudes nesses espaços? Seus aportes e trabalhos de base foram realmente considerados como exemplos valiosos de colaboração na resposta global ao HIV? Essas questões são chave para entender o papel que as juventudes desempenharam e deveriam continuar desempenhando na configuração das respostas globais diante dessa crise sociossanitária. 

A nível mundial, estima-se que há aproximadamente 1,2 bilhões de jovens entre 15 e 24 anos, o que representa cerca de 16% da população global. Na América Latina, esse número chega a 160 milhões de jovens e, segundo dados da UNICEF e ONUSIDA, a cada dia aproximadamente 30 adolescentes e jovens da região são infectados com HIV. As juventudes latino-americanas enfrentam barreiras em seu ativismo e incidência política global, como a falta de educação de qualidade. Isso se reflete, por exemplo, no fato de que em alguns países o ensino de idiomas como o inglês, necessário na atualidade devido à globalização, não é de fácil acesso para muitos jovens. Além disso, há a falta de conectividade ou acesso à inteligência artificial ou à tecnologia em geral. Atualmente, a América Latina enfrenta contextos particulares que precisam de atenção integral, sendo a região mais desigual do mundo, uma realidade que impacta de maneira desproporcional jovens, mulheres, pessoas negras, indígenas, habitantes de áreas periféricas, camponeses, LGBTQIAPN+ e aqueles que vivem com HIV.

A Conferência Global de HIV/Aids, realizada de 22 a 26 de julho em Munique, Alemanha, reuniu mais de 11.000 delegados de todo o mundo. Um dos espaços mais destacados dentro da conferência foi a “Global Village”, uma exibição impressionante que mostrou o trabalho realizado por organizações da sociedade civil a nível global. Este espaço abrigou cerca de 50 sessões de painelistas, mais de 40 apresentações orais, 20 oficinas, 17 pré-conferências, 30 simpósios, 100 sessões satélites e mais de 2.200 pôsteres e imagens, todos focados nas ações globais para a resposta ao HIV/AIDS. Este evento reuniu pessoas de diversas regiões, todas unidas pelo seu compromisso na resposta global. Dentro da “Global Village” destacava-se o espaço denominado “Munich Youth Force”, um fórum dedicado e liderado por jovens de todo o mundo, com o apoio da Sociedade Internacional da Aids, a Rede Global de Jovens com HIV (Y+), e outras organizações internacionais.

O mais destacável deste espaço foi sua agenda carregada de painéis, nos quais participaram pessoas de diversas regiões, abordando uma ampla gama de temas que refletem experiências únicas a nível global. Essas discussões se concentraram em problemáticas específicas, com o objetivo de encontrar soluções coletivas. No âmbito deste fórum, um membro da Coordenação Regional da Rede de Jovens e Adolescentes Positivos da América Latina e do Caribe Hispano (J+LAC) teve a oportunidade de participar junto com outros líderes de diversas regiões, moderando o painel intitulado “2° Global Dialogue: Perspectives on HIV, Sexual Diversity and Youth in the Global Response”. Este painel foi um espaço crucial para a troca de ideias e experiências sobre o impacto do HIV na juventude e na diversidade sexual a nível mundial. A discussão centrou-se em como as respostas globais à epidemia podem e devem ser mais inclusivas e adaptadas às realidades dos jovens, reconhecendo seus desafios específicos e a necessidade de estratégias mais eficazes e culturalmente pertinentes. Este diálogo global permitiu não só visibilizar as diferentes perspectivas regionais, mas também identificar oportunidades para fortalecer a colaboração internacional na luta contra o HIV.

A participação das juventudes no “Munich Youth Force” e em outros espaços da “Global Village”, assim como nas sessões da conferência, foi fundamental. As juventudes trouxeram perspectivas únicas baseadas em suas vivências, adaptando suas visões aos contextos que enfrentam. Muitas vezes, não se tem consciência de que muitos territórios no mundo requerem soluções coletivas que já estão sendo implementadas com sucesso em outras regiões, mas que ainda não são conhecidas em outras, como, por exemplo, a criação de mesas intersetoriais que abordem o HIV não unicamente sob uma perspectiva biologicista, mas sociocultural e de direitos humanos como na Argentina e no Brasil. No entanto, devido ao conservadorismo, ao estigma e à falta de política pública em países como Paraguai, isso ainda não é viável. Por isso, é muito necessário fortalecer a participação das juventudes nesses espaços globais para facilitar a troca de boas práticas e, ao mesmo tempo, compreender os desafios que existem em outras latitudes, que poderiam ser mais semelhantes do que se imagina.

Dentro da conferência, foram expostas boas práticas em regiões como a Europa ou América do Norte sobre a inclusão interseccional de certas populações que antigamente não eram consideradas para abordar a resposta ao HIV/aids, tais como docentes, trabalhadores sociais ou legisladores, além das inclusas como populações-chave (LGBGTQIAPN+), mulheres, trabalhadores sexuais, negras, indígenas, periféricas, usuários de drogas, etc.) ou médicos e profissionais de enfermagem. Além das barreiras já mencionadas que enfrentam as juventudes não só latino-americanas, mas globais, aprofundaremos em uma em particular que foi muito visível na conferência. Na era atual, dominada pela tecnologia, observou-se como as redes sociais, a inteligência artificial e os dispositivos inteligentes se integraram na vida cotidiana de maneira repentina e sem consulta prévia. Durante vários painéis na pré-conferência e na conferência principal, debateu-se sobre a inteligência artificial sob diversas perspectivas, analisando tanto sua acessibilidade quanto sua crescente relevância na vida diária.

Embora tenha se difundido amplamente em todo o mundo, a inteligência artificial continua sendo um privilégio reservado às elites, especialmente no Norte Global. Regiões como América Latina, África, Sul da Ásia e Oceania continuam na periferia do capitalismo, marginalizadas em termos de acesso à tecnologia diversa. Uma problemática específica observada foi a limitação de assistência por parte de muitos ativistas, principalmente jovens que não dominavam o inglês, devido à falta de divulgação sobre a logística das traduções simultâneas. A tradução, gerada a partir de um aplicativo de inteligência artificial em tempo real, era inacessível para aqueles que não possuíam smartphones ou dispositivos de alta gama. Isso novamente elitiza e restringe a informação a um setor específico da sociedade, relegando aqueles que não fazem parte do Norte Global, branco, eurocêntrico e com poder aquisitivo. Pareceria que as barreiras que as juventudes enfrentam em seus territórios, somadas às grandes dificuldades que se apresentam para chegar a esses espaços de incidência global, são mais agudas devido à falta de compreensão sobre a importância de nossas presenças e de nossas contribuições.

Hoje, o adultocentrismo branco do Norte Global continua permeando todas as esferas de ativismo, invisibilizando muitas lideranças a nível global, focando principalmente nas juventudes, mulheres, negras, usuárias de drogas, trabalhadores sexuais, LGBTQIAPN+ e dissidências que contestam e não seguem a linha do discurso que não engloba todas as realidades e contextos multiculturais ao redor do mundo.

Os espaços onde temos lugar nunca se apresentaram de maneira simples, sendo sempre uma luta constante que ao longo da história custou vidas, tempo e saúde mental. Essas situações continuam marginalizando pessoas, especialmente jovens, que provêm de regiões periféricas do capitalismo. Suas vozes, experiências, vivências e identidades dissidentes não são consideradas, o que impede uma resposta global verdadeiramente inclusiva e adaptada aos contextos locais. Assim, desde 2020 até o presente, observou-se uma diminuição na participação de pessoas da região latino-americana nesses espaços. No ano da pandemia, segundo dados da IAS, 12,5% dos participantes eram da América Latina; no entanto, esse número caiu para 11% no ano seguinte, registrou um leve aumento para 11,7% em 2022, para depois cair para 9,1% em 2023 e alcançar um preocupante 7,4% na conferência mais recente. Embora não existam dados desagregados sobre a participação juvenil, no evento pôde-se perceber uma presença notável de jovens de todo o mundo. Para alcançar uma resposta eficaz, é crucial revitalizar esses espaços, garantir o acesso a ferramentas tecnológicas e promover a participação da sociedade civil, especialmente das juventudes. É necessário reduzir as barreiras burocráticas, como os custos de entrada, os vistos e a escolha de sedes, que muitas vezes não são acessíveis ou amigáveis para todos. O jovem ativista Leonardo Moura, da Rede de Jovens e Adolescentes Positivos do Brasil (RNAJVHA), que colabora com a Rede Latino-Americana de Jovens HIV+ (J+LAC), advertiu que, devido ao avanço do conservadorismo e dos governos de extrema direita, está-se perdendo terreno na resposta ao HIV/AIDS, o que ressalta a importância de incluir as juventudes e todas as pessoas nesses esforços, sob o princípio de “nada para nós, sem nós”. Durante a conferência, Moura apresentou um estudo sobre as barreiras de acesso das juventudes ao sistema de saúde. Ele apontou que sem a inclusão dos jovens nos trabalhos e pesquisas que os afetam, será impossível alcançar metas como a cascata 95/95/95, e a contribuição à resposta global não será efetiva.

Isso nos leva a compreender a necessidade integral não só de garantir a participação das juventudes nos espaços de incidência global, mas de empoderá-los a continuar o trabalho a partir do apoio de agências internacionais, governos e ativistas de longa trajetória, para que a frase da Conferência Global Aids 2024 se efetive e não fique apenas como slogan. “Deixemos que as comunidades liderem” é uma frase poderosa que não basta com incluir as pessoas, mas empoderá-las, garantir sua inclusão nos espaços nacionais, regionais e globais, como também considerá-las na hora de pensar em ações para o desenvolvimento das sociedades, para o cumprimento e aplicação de políticas públicas que as atravessam, como o Consenso de Montevidéu, os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável ou a Agenda 2030. Somos a resposta, mas além disso, não somos o futuro, mas o presente que deve ser fortalecido e mais que nunca valorizado.

Quando soube que vivia com HIV, um novo hóspede tinha se alojado no meu corpo sem pedir permissão e esse novo vírus se somava ao que era minha pessoa. Além de ser LGBTQIAPN+, migrante, estudante, de zona rural e ativista, eu me tornava em casa de um vírus que, além de me tornar uma pessoa vulnerabilizada ao estigma e à discriminação, destrói meu sistema imunológico se eu não tomasse medicamentos e me controlasse. Mas também contava com outra face e era a abertura de um novo caminho como ativista, o poder de conhecer pessoas com contextos similares e diferentes dos meus e além de ampliar meus horizontes na luta pelos direitos humanos.

As juventudes existimos e resistimos, não somos pessoas vulneráveis, mas vulnerabilizadas, devemos ser incluídas a partir de nossas interseccionalidades transversais. Mba´eve ore rehegua, ore rehe´y – Nada sobre nós, sem nós.

* Matias Mendieta Duarte é estudante de Antropologia e Diversidade Cultural Latino-Americana Universidade Federal da Integração Latino-Americana – UNILA Rede de Jovens e Adolescentes Positivos da América Latina e o Caribe Hispánico – J+LAC.