Estamos no caminho certo para erradicar a aids como um problema de saúde pública até 2030? Essa pergunta foi o tema central da live promovida pelo Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas na noite de terça-feira, 27 de agosto. O evento contou com a presença de mulheres que estiveram na 25ª Conferência Internacional de Aids (Aids 2024), realizada em julho em Munique. Elas compartilharam suas impressões sobre o evento, as novidades apresentadas e o impacto dessas experiências na luta contra a aids.

Uma das convidadas da live, a ativista Fabi Mesquita Guarani, do Instituto Multiverso, marcou presença na Conferência com uma apresentação de dança que combinou arte e resiliência, em homenagem às Cidadãs Posithivas. Conhecida por sua sensibilidade e por desafiar padrões, Fabi trouxe para o evento uma performance carregada de simbolismo e emoção.

“Eu nunca tinha participado de uma conferência pessoalmente, sempre acompanhei à distância. Considerava esses espaços, como jornalista e pessoa de comunicação, muito herméticos. Sabemos que alguns ambientes precisam ser técnicos e acadêmicos, mas também acredito que deveria haver espaço para expressão artística”, relatou Fabi.

Ao saber que não haveria nenhuma representante do Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas na conferência, Fabi sentiu a necessidade de representá-las através da dança. A música escolhida, uma canção argentina interpretada por Milva, possui um significado especial para a ativista. “Sempre fui uma pessoa que não se encaixava em padrões. Essa música fala de renascimento, e eu associei esse renascimento ao ano de 2030, mesmo que na canção se fale em 3001. Para mim, esse renascimento era simbólico e importante. Foi emocionante.”

Fabi destacou a importância da arte em espaços como a conferência. “Embora eu ainda ache que a arte não recebe a devida atenção prática nesses espaços, a dança foi um momento especial. Cinema, dança, teatro – são expressões fundamentais que têm o poder de furar bolhas e fazer com que as pessoas entendam questões complexas de maneira mais profunda. Às vezes, questionava se eu tinha o direito de estar ali, porque eu não tenho HIV no sangue, mas no coração. Como mulher indígena, entendi a necessidade de políticas públicas e da representatividade.”

A militante criticou a ausência de um estande brasileiro na Aids 2024 e a falta de engajamento das delegações em atividades da sociedade civil. “O Brasil, por exemplo, não tinha um estande. As delegações não prestigiaram muitas das atividades. Tentamos levar as pessoas para as apresentações de dança, mas o interesse foi mínimo. A sociedade civil ficou relegada a segundo plano.”

Ela também mencionou episódios de racismo e transfobia, destacando o desconforto de realizar reuniões em países historicamente colonizadores. Contudo, Fabi viu esperança na nomeação da infectologista e pesquisadora Beatriz Grinsztejn, do INI/Fiocruz, como presidente da International Aids Society (IAS). “Pela primeira vez, temos uma mulher latino-americana, brasileira e lésbica assumindo um papel de destaque. Isso me deixou esperançosa.”

A conferência, segundo Fabi, foi marcada pelo protagonismo feminino. “Foi, de fato, muito feminista, com muitos estandes de mulheres, trabalhadoras do sexo, lésbicas e outros grupos que normalmente são invisibilizados. A pauta da amamentação, por exemplo, foi trazida com muita força, o que é fundamental, já que historicamente a mulher nunca esteve no centro da resposta. Desta vez, senti que foi diferente, que o corpo feminino teve uma presença significativa e necessária.”

Cobertura da Agência Aids na Conferência

Conferência Mundial sobre AIDS em Munique

Durante uma live, a ativista Heliana Moura, que mediou a conversa, questionou a jornalista Talita Martins, coordenadora editorial na Agência Aids, sobre os desafios de uma cobertura jornalística em um evento da magnitude da Conferência Internacional de Aids. Heliana destacou o papel fundamental que a Agência Aids teve no evento ao noticiar desde as pré-conferências até o evento principal, e elogiou a inclusão de “observadores” como uma inovação significativa.

Segundo Talita, “se tivéssemos uma equipe de 50 jornalistas, ainda assim não daríamos conta de cobrir tudo, porque há muitas discussões, atividades e apresentações acontecendo simultaneamente. A Roseli [Tardelli] sempre diz que tropeçamos em pauta o tempo inteiro, e é verdade. Essa conferência foi muito intensa. Tivemos mais de 40 sessões de resumos orais, 50 palestras de convidados, 20 workshops, 17 pré-conferências, 30 sessões de simpósio, 100 sessões satélites e mais de 2.200 pôsteres exibidos, incluindo muitos de brasileiros.”

Talita também destacou a comemoração dos 20 anos do Global Village, um espaço dedicado à sociedade civil. “Fomos com uma equipe de quatro pessoas – eu, Marina, Kerén e Fábio Serrato – e conseguimos produzir mais de 60 reportagens. Além disso, em parceria com o SescTV, nossa diretora Roseli Tardelli participou do evento e, junto com Margarete Noé e Bianca Duarte, gravou um documentário em homenagem aos 20 anos do Global Village. Roseli também foi responsável por diversas entrevistas exclusivas para o Instragram. Entre notícias, boletins e entradas ao vivo, fizemos quase 100 publicações nas redes sociais”, completou.

A inclusão dos “observadores”, proposta por Roseli Tardelli, foi um dos pontos altos da cobertura. “Roseli teve a ideia dos ‘observadores’ – médicos, pesquisadores, ativistas e gestores – para trazer todos os olhares possíveis, pois entendemos a importância de capturar diferentes perspectivas. Infelizmente, não conseguimos envolver tantos ativistas quanto gostaríamos. Assim como a Fabi, considero que o Brasil e a América Latina perderam espaço na discussão internacional sobre a aids”, observou Talita.

Apesar dos desafios, a presença de figuras como Alícia Krüger, uma mulher trans que trabalha na Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde, trouxe alguma visibilidade para o Brasil na Conferência. “Ela participou de conversas importantes e foi mentora de um grupo de mulheres cientistas alinhadas com a meta de acabar com a aids até 2030”, disse Talita.

A jornalista alertou ainda para os dados alarmantes da epidemia: “Mesmo 43 anos depois, temos uma morte por minuto no mundo devido ao HIV e muitas crianças sem acesso à medicação. A sensação é de que o HIV continua ganhando, e que nós, pessoas que trabalham contra a aids todos os dias, não estamos conseguindo chegar a tempo para evitar novas infecções.”

Além disso, Talita destacou a apresentação de mais um caso de cura na Aids 2024, o que é especialmente relevante para campanhas como a das Cidadãs Posithivas, que pedem mais pesquisas sobre a cura. No entanto, ela enfatizou que ainda há muito a ser feito, especialmente em áreas de conflito como Palestina e Ucrânia, onde as mulheres enfrentam situações extremamente difíceis. “Temos um longo caminho a percorrer”, concluiu.

Desafios no acesso as novas tecnologias

Lenacapavir mostra 100% de eficácia na prevenção do HIV em mulheres - Sincofarma SP

Durante a live, a ativista Heliana Moura chamou atenção para o papel central da PrEP na Conferência Internacional de Aids, mas levantou preocupações sobre os desafios de acesso a medicamentos como o lenacapavir, especialmente devido aos altos custos impostos pelas indústrias farmacêuticas.  Essa medicação injetável de longa duração foi testada em mais de duas mil mulheres africanas e se mostrou 100% eficaz na prevenção do HIV. “É um longo caminho até garantir o acesso, não só no Brasil, mas também em outros países que ainda enfrentam dificuldades para obter medicamentos essenciais”, afirmou Heliana.

A jornalista Talita Martins reforçou a importância da discussão sobre patentes, lembrando que, embora o lenacapavir seja um antirretroviral de longa duração já disponível nos Estados Unidos e Canadá para tratamento, mas ainda não há previsão de acesso para prevenção. “A questão é: como garantir que essa inovação chegue às pessoas que mais precisam? Essa reflexão é crucial.”

De acordo com informações da farmacêutica Gilead, responsável pelo medicamento, atualmente o lenacapavir é indicado para uso em combinação com outros antirretrovirais em adultos com infecção por HIV-1 multirresistente que apresentaram falha terapêutica devido à resistência, intolerância ou questões de segurança. O medicamento está disponível em duas formas: comprimido oral de 300 mg e solução injetável de 309 mg/ml de liberação prolongada para administração subcutânea.

Queda de investimentos, violência de gênero e extrema-direita

Marina Vergueiro, jornalista, poetisa e ativista vivendo com HIV, participou da live, abordando questões como a queda de investimentos em saúde, a violência de gênero e a ascensão da extrema-direita, que ameaçam as políticas de aids. Ela compartilhou sua experiência ao cobrir pela primeira vez a conferência ao lado da equipe da Agência Aids. “Foi um dos momentos mais emocionantes desde o meu diagnóstico de aids, em 2012. Conheci pessoas do mundo inteiro que enfrentam os mesmos desafios, e estar na linha de frente, acessando diretamente quem toma decisões que afetam nossas vidas, foi muito especial”, relatou.

Em uma coletiva de imprensa, durante a conferência, Marina questionou a diretora do Unaids, Winnie Byanyima, sobre as estratégias para proteger as populações vulneráveis da extrema-direita. Embora não tenha obtido uma resposta direta, Marina mencionou a situação dos argentinos que já estão cogitando se mudar para o Brasil devido à falta de antirretrovirais em seu país, resultado das políticas do presidente Javier Milei. “É um erro grave não fornecer esses medicamentos, pois as pessoas doentes sobrecarregam o sistema de saúde, gerando mais custos e complicações desnecessárias”, observou.

Quanto às metas de 2030 para a eliminação da aids enquanto problema de saúde pública, Marina expressou ceticismo. “Infelizmente, não sou otimista. Existem muitos interesses lucrativos envolvidos. Descobrimos que o lenacapavir pode ser vendido por 40 mil dólares, enquanto seu custo de produção é de apenas 40 dólares. Esse lucro exorbitante impede que a medicação chegue a quem mais precisa”, destacou.

Marina encerrou enfatizando a necessidade de manter a palavra aids viva e de continuar lutando por maior representação e acesso a tratamentos. “A aids é extremamente lucrativa para muitos stakeholders, incluindo indústrias farmacêuticas e ONGs. Precisamos continuar falando sobre isso, porque a aids ainda lucra com nossos corpos, nossa saúde física e mental, e até com nossas mortes”, concluiu.

A live chegou ao fim com a exibição da dança de Fabi em homenagem as Cidadãs.

Assista a live na íntegra:

Redação da Agência de Notícias da Aids

Dica de entrevista

Movimento Nacional das Cidadãs Posithivas

Site: www.mncp.org.br