Dados amplos sobre contexto social e econômico dos pacientes são essenciais
Enquanto acompanho diversos setores avançarem no processo de digitalização, como é o caso do setor bancário, percebo o potencial da transformação para a saúde. Sabemos que, em qualquer circunstância, a construção de estratégias e projetos sustentáveis depende de informações precisas e integradas, mas o setor da saúde no Brasil ainda enfrenta obstáculos por conta da fragmentação e desatualização dos dados disponíveis.
Tenho pensado nisso com frequência, mas essa reflexão ganhou força após uma recente experiência da empresa que presido, em parceria com a consultoria AT Saúde, by Semantix, no desenvolvimento de um relatório sobre barreiras estruturais no deslocamento de pacientes com câncer de mama e de colo de útero, que também foi revisado pelo dr. Nelson Teich. Ao buscar os dados disponíveis no Brasil, percebemos a urgência de investimentos no fortalecimento dos Registros Hospitalares de Câncer (RHC) e na promoção de estratégias voltadas à digitalização e interoperabilidade de dados. As informações apresentam inconsistências que impedem uma leitura clara e uniforme do cenário sem um grande esforço no cruzamento e na complementação dos números apresentados.
A análise fica ainda mais complexa quando inserimos nesta conversa outro aspecto também negligenciado —dados que nem sequer fazem parte dessas redes ou dados coletados de forma inconsistente, a que chamo de “números que ninguém vê”. Refiro-me às informações sobre o contexto social e econômico dos pacientes, também essenciais para o desenvolvimento de políticas públicas e diretrizes verdadeiramente eficazes.
Quando ignoramos as determinantes e condicionantes sociais que compõem o contexto do indivíduo, tornamos invisíveis características que são cruciais na equação. A elementar decisão de parar um tratamento, por exemplo, pode esconder uma realidade desafiadora do paciente. Vimos isso em outro projeto, desta vez realizado em parceria com a Educare Brasil: uma pesquisa com 17 dos 31 Centros e Unidades de Assistência de Alta Complexidade em Oncologia (Cacons e Unacons) de todo o Rio Grande do Sul. Entre os dados coletados, mapeamos que a desistência do paciente ocorre em 58,8% dos casos.
Ao abordar as principais dificuldades relatadas por pacientes, a distância e o deslocamento foram mencionados por 70% dos Cacons/Unacons, ao lado de efeitos colaterais (82%) e idas frequentes ao hospital (64%). A dificuldade de acesso à radioterapia foi justificada pela distância, sendo que 29% das instituições relataram que os pacientes se deslocam por mais de 70 km para chegar ao centro, enquanto 17% andam entre 40 km e 70 km. Além disso, 70% dos pacientes utilizam transporte oferecido pela gestão do município.
Qual é o impacto para o ecossistema de saúde quando um paciente abandona o tratamento por não conseguir sustentar a locomoção para as unidades de tratamento? Qual a influência para o sistema quando, sem outra opção, este paciente volta a pedir assistência em estágio avançado ou para cuidados paliativos? Quantos recursos estamos desperdiçando por não conseguir viabilizar uma jornada realmente efetiva para quem convive com patologias complexas, como câncer ou doenças neurológicas?
São muitas perguntas que só podem ser respondidas quando a perspectiva do paciente é considerada.
Reconheço o enorme desafio que enfrentamos para superar as barreiras de infraestrutura, fortalecer nossa estratégia de atuação digital e estabelecer um conjunto de dados mínimos que viabilize a interoperabilidade entre os sistemas. Contudo, é essencial que, como gestores, nunca percamos de vista o contexto social em que estamos inseridos —as determinantes e condicionantes sociais que impactam a saúde e traduzem a complexidade de nossa existência individual.
Enxergar cada pessoa de forma integral, considerando sua realidade social, econômica e cultural, é essencial para a criação de políticas públicas de saúde eficazes. Propostas que desconsideram esses fatores estão destinadas ao fracasso, pois não atendem às reais necessidades dos indivíduos. Para criar um sistema de saúde verdadeiramente inclusivo e eficiente, é necessário ampliar nossa visão e tornar esses números visíveis em qualquer análise —compreendendo sempre que a saúde, quando corretamente gerida, nunca representará um gasto, mas sim um investimento, com efeitos multiplicadores em todas as esferas da sociedade.
Fonte: Folha de S.Paulo / Por Lorice Scalise