Refugiados de guerra e conflito têm necessidades de saúde, assim como qualquer outra pessoa, incluindo aqueles que vivem com HIV/aids. Mas será que estão recebendo os serviços integrados de que precisam? As estruturas de emergência — sejam elas da sociedade civil, comunitárias, nacionais, internacionais ou humanitárias — estão adotando uma abordagem centrada nas pessoas? Com essas questões, representantes de diversas organizações com experiência na prestação de serviços de saúde para refugiados convidaram o público da 25ª Conferência Internacional de Aids (Aids 2024), em Munique, a refletir sobre as crises em andamento na Ucrânia, Estado da Palestina, Sudão, entre outros.

“Em 2022, foram disponibilizados 40 bilhões de dólares para assistência humanitária, mas apenas 3% chegou às organizações locais na Ucrânia. Governos e organizações humanitárias nem sempre compreendem as necessidades das pessoas vivendo com HIV, não as priorizando como uma crise urgente. Adaptamos nossas organizações para receber fundos humanitários, oferecendo assistência técnica especializada e modificando políticas para competir por recursos. Trabalhamos para que os financiadores humanitários priorizem nossos grupos e necessidades, resultando em quase 5 milhões de dólares em fundos humanitários para organizações comunitárias focadas em HIV. A mensagem é clara: aumentar investimentos na capacidade das organizações comunitárias é essencial.”

Essas palavras são da ativista ucraniana Valeria Rachinska, da ONG 100% Vida. Em um relato pessoal, ela, que liderou o debate sobre refugiados na Aids 2024, compartilhou: “Em 24 de fevereiro, quando a invasão russa começou, fui para um abrigo com meus dois filhos. Foi uma experiência difícil, mas tivemos que pensar na sobrevivência diária, em alimentos, água e segurança.”

Valeria quis saber dos profissionais de saúde e representantes de ONGs quais desafios eles têm enfrentado na luta pela garantia do acesso à saúde. Allen Maina, da Agência da ONU para Refugiados (UNHCR), Fátima Cabello, da Cruz Vermelha Espanhola, Esther Casas, dos Médicos Sem Fronteiras, e Magdalena Barchak, da Fundação Social de Educação na Espanha, afirmaram que os conflitos deslocam milhões de pessoas, tornando a segurança uma prioridade, muitas vezes deixando a saúde em segundo plano.

Allen Maina, da UNHCR, mencionou que o número de deslocados globalmente está aumentando, exacerbando as dificuldades no acesso a serviços de saúde. Fátima, da Cruz Vermelha, destacou a importância de conectar migrantes ao sistema de saúde pública para garantir continuidade no tratamento.

“A UNHCR é uma agência de refugiados que trabalha para salvar vidas, proteger direitos e construir um futuro melhor para pessoas forçadas a fugir devido à violência, conflito ou perseguição. É crucial entender a magnitude dessa situação, que é muito real e visível diariamente. Atualmente, o número de deslocados no mundo atingiu um recorde de 120 milhões de pessoas, representando cerca de 1,5% da população global e continua crescendo, com um aumento de mais de 20% no último ano. Com os conflitos atuais, esses números infelizmente continuam a subir. Nos últimos três anos, a UNHCR declarou 118 emergências, ou seja, uma emergência a cada 10 dias. Os conflitos afetam gravemente o acesso aos serviços de saúde, com ataques a trabalhadores de saúde e instalações. Refugiados e deslocados, que antes viam esses serviços como um refúgio seguro, agora não sabem o que esperar”, disse Allen Maina.

Ação da Cruz Vermelha

Fátima Cabello ressaltou que a Cruz Vermelha desenvolve atividades e programas ao redor do mundo, focando em HIV e outras ISTs desde os anos 80, tanto em emergências quanto no dia a dia, no nível comunitário. “Representando a Cruz Vermelha Espanhola, uma das sociedades nacionais do movimento da Cruz Vermelha, quero ressaltar que a organização desempenha um papel essencial no apoio às autoridades públicas na Espanha, que recebe muitos migrantes. Nossa experiência com migrantes, vindos de países em conflito ou não, mostra que, na maioria dos casos, esses migrantes chegam com testes positivos para HIV já realizados em seus países de origem. O principal desafio é o acesso limitado ao tratamento quando eles chegam ao nosso país. Embora o sistema de saúde nacional garanta o acesso ao diagnóstico e ao tratamento, independentemente da situação administrativa, o papel da Cruz Vermelha é crucial para facilitar esse processo. A Cruz Vermelha ajuda a conectar os migrantes ao sistema de saúde pública regional, assegurando que tenham acesso ao tratamento necessário e ajudando com questões burocráticas e administrativas.”

Desafios na Polônia

Magdalena Barchak, da Fundação Social de Educação, destacou a necessidade de apoio às organizações que trabalham com HIV, especialmente em países com recursos limitados como a Polônia. O envolvimento das comunidades é crucial para garantir a continuidade dos serviços de saúde durante crises. É fundamental incluir a preparação em todos os níveis, com flexibilidade nos fundos e uma abordagem colaborativa que priorize os direitos humanos.

“Quando a guerra começou na Ucrânia, fui uma das principais pessoas a quem muitos recorreram para ajudar na organização de suas vidas na Polônia. Cerca de 7 milhões de ucranianos se deslocaram para a Polônia, embora alguns tenham ido para outros países. É importante entender as diferenças entre Polônia e Ucrânia no contexto do HIV: na Polônia, vivem 25 mil pessoas com HIV; na Ucrânia, 250 mil. Na Polônia, menos de 30% das pessoas com HIV são mulheres, enquanto na Ucrânia são cerca de 50%. Na Polônia, temos menos de 100 crianças com HIV; na Ucrânia, são mais de 3 mil. Na Polônia, não contamos com financiamentos globais. Muitos de nós trabalhamos em diferentes empregos e atuamos na organização como um trabalho extra, já que não recebemos financiamento governamental. Dependemos de projetos, e o que conseguimos arrecadar é o que temos. Este ano, por exemplo, o Centro de Atenção Nacional anunciou um projeto para apoiar pessoas com HIV, destinando a cada organização cerca de 5 mil euros anuais. Esta é a nossa realidade. Não recebemos grandes apoios internacionais e precisamos lidar com a situação com os recursos que temos.”

Ela continua: “As organizações fazem o máximo possível, mas os clínicos enfrentam uma enorme pressão. Atualmente, temos 20% mais pacientes vivendo com HIV em nossa clínica, mas com o mesmo número de médicos. Por outro lado, estou feliz por termos muitas pessoas incríveis da rede ucraniana, e apoiamos a criação de novas organizações. Contudo, nossa capacidade é limitada, e muitas vezes enfrentamos emergências sem o apoio necessário. Precisamos de uma estratégia de longo prazo para apoiar estas pessoas, especialmente porque, além dos ucranianos, também recebemos migrantes de outros lugares, como a Bavária e países africanos, que não têm seguro saúde. É um desafio complexo, e a Polônia não dispõe do mesmo apoio que os EUA, por exemplo.”

Perspectiva dos Médicos Sem Fronteiras

A médica Esther Casas, do MSF, contou que a organização que foca em HIV, tuberculose, doenças crônicas e que os Médicos Sem Fronteiras é uma organização independente e neutra, que responde a conflitos e suas consequências na saúde. “O que temos observado ao longo dos anos é que, quando se trata de interrupções na provisão de serviços de saúde, o HIV e as doenças crônicas são frequentemente deixados para trás e nunca se tornam uma prioridade. Vemos interrupções no acesso a medicamentos, tratamentos e suporte geral à saúde. Há inúmeros problemas, incluindo questões de segurança e deslocamento, que tornam todos vulneráveis, mas os mais vulneráveis são sempre os mais afetados. Também percebemos que a preparação nunca é bem feita com antecedência, mesmo em situações que poderiam ser planejadas. Por outro lado, temos visto melhorias na comunicação e acho que devemos aprender a capitalizar essas lições positivas.”

Os especialistas encerraram o debate lembrando que a saúde dos refugiados é um aspecto crítico frequentemente negligenciado em contextos de crise. Os desafios enfrentados por esses indivíduos são complexos e multifacetados, refletindo a urgência de uma abordagem mais eficaz e humana.

Redação da Agência de Notícias da Aids

* A Agência de Notícias da Aids cobre esta edição da Conferência com o apoio do Departamento de HIV/Aids, Tuberculose, Hepatites Virais e Infecções Sexualmente Transmissíveis (Dathi), do Ministério da Saúde, e da Coordenadoria Municipal de IST/Aids de São Paulo. Os portais jornalísticos IG, Catraca Livre e a EBC – Empresa Brasil de Comunicação, receberão informações sobre o evento.