No dia 03 de dezembro, o Fantástico exibiu uma reportagem sobre sorofobia/aidsfobia. Produzida por Bruno Della Latta, a matéria acompanhou um pouco da vida de 3 pessoas que vivem com HIV/aids, Jean Carlos, Tatiane Lima e Diego Moi.
A reportagem em si representa um marco, pois constrói um processo de humanização das pessoas vivendo com HIV/aids, trazendo de forma sensível um pouco do dia a dia dessas pessoas e mostrando ao público que é possível viver com HIV e ter uma qualidade de vida, ter filhos, receber afeto, ser atleta… As personagens fogem dos estereótipos da “cara da aids”.
Destacou-se o processo de construção da epidemia de aids enquanto a “epidemia do outro”, e não como um problema de saúde pública. E trouxe igualmente a tragédia da utilização do medo como estratégia de prevenção.
E ao historicizar a epidemia enquanto “peste gay” e o medo como principal ferramenta, evidenciou-se não apenas o estigma sobre determinados grupos populacionais, mas lançou-se luz sobre o apagamento da epidemia nas crianças e nas mulheridades, cis, trans e travestis, como bem observou a pesquisadora Cláudia Santamarino. E as trans masculinidades permanecem às sombras em relação à aids, sem dados epidemiológicos, sem prevenção, sem matéria…
Outro ponto de destaque foi o fato de que a matéria em si possibilitou criar uma fissura no estigma em HIV/aids e no estigma em relação a identidades de gênero dissidentes. Ao trazer uma travesti vivendo com HIV/aids, com sorologia aberta, enquanto especialista para debater a epidemia, e respaldada pelo Instituto de Infectologia Emílio Ribas, a reportagem auxilia para diminuir o estigma que está atrelado à travestilidade e realoca o imaginário das travestis de um local exclusivamente de vulnerabilidade para o de agente produtora de tecnologias sociais e de novas epistemologias, contribuindo para transformar a forma como a saúde, a imprensa e a sociedade olham para pessoas trans, travestis e pessoas vivendo com HIV/aids.
Essa transformação no olhar, isto é, a abertura de possibilidades em se pensar conviver com pessoas trans, travestis e pessoas vivendo com HIV/aids também no mercado formal de trabalho poderá ter um impacto enorme na própria epidemia de aids, nos tirando da prostituição compulsória e nos inserindo de forma digna na sociedade.
Com os avanços nas tecnologias preventivas / tratamento, tanto infecção por HIV como mortalidade por AiD$ são absolutamente evitáveis. Portanto, a questão que ainda carece ser melhor discutida ainda gira em torno das dificuldades do acesso à saúde. Barreiras estruturais e institucionais, especialmente o racismo e a transfobia, precisam ser melhor debatidos, pois afastam ou impedem que pessoas tenham seu direito à saúde, bem como o direito ao próprio trabalho formal devidamente garantidos.
Territorialidade também é algo que não foi debatido na reportagem. Parece que o Brasil é São Paulo, e que São Paulo é a realidade da epidemia de AIDS no Brasil. Mas está longe de ser. Há muito tem sido discutido de como ainda nascem crianças com HIV/Aids Brasil à fora, e que essas crianças geralmente não são brancas. Tampouco foi discutido sobre as dificuldades em acessar um serviço especializado em HIV/AIDS em uma cidade pequena, com pouco sigilo e muita exposição, questões ainda bastante recorrentes.
Ainda assim, grosso modo, acredito que o saldo da reportagem foi positivo, pois sensibilizou os telespectadores, possibilitando uma abertura de diálogo. Agora é preciso que as próximas matérias destaquem melhor a importância de pensar acesso: a insumos preventivos, à informação; em como as pessoas são recebidas nos serviços de saúde. E também a questão da representatividade, pois faz toda diferença haver profissionais negros, indígenas, não brancos e de gêneros dissidentes trabalhando em múltiplos cargos nas instituições. A população, as diferentes comunidades certamente se sentiriam mais representadas e acolhidas nestes espaços.
Por fim, é preciso que as grandes mídias, bem como as instituições de saúde e a sociedade de forma geral assumam compromissos por suas trajetórias, e promovam ações como forma de reparação histórica para transformar o imaginário das pessoas vivendo com HIV/Aids, o que certamente inclui ampliar o cuidado, compreender as relações de poder e expandir o acesso à saúde.
* Pisci Bruja é travesti e vive com HIV/Aids. Antropóloga e educadora, vem desenvolvendo tecnologias sociais em diferentes áreas, desde o movimento social até as artes, no meio acadêmico e no Sistema Único de Saúde (SUS). Pisci trabalha com pesquisas clínicas há três anos e participou de um consórcio de pesquisa de cura do HIV, e também auxiliou em estudos de PrEP injetável, expandindo sua implementação para mulheres cisgêneras no Brasil. Atualmente, desenvolve uma linha de cuidado para pessoas trans e travestis no Instituto de Infectologia Emilio Ribas e atua como pesquisadora e articuladora política da Organização Social Loka de Efavirenz.