Especialistas explicam como surgiram as nomenclaturas e definições que ganharam maior visibilidade em declarações de famosos

Ecossexual, Sapiossexual, Abrossexual e Demissexual: qual a origem desses termos? — Foto: Freepik

Você sabe como surgem termos como ecossexual, sapiossexual, abrossexual e demissexual? Quando uma nova nomenclatura aparece na mídia, muita gente questiona se é uma “nova invenção” ou “modismo” de momento. Mas não é. Talvez pela falta de informação, essas e outras definições tão relevantes acabam ganhando notoriedade, mas sem muita profundidade.
Por este motivo, o gshow conversou com os especialistas Carla Cecarello e Jairo Bouer para entender melhor sobre cada abordagem e para compreender quais os caminhos para evitar cair em rótulos. Confira!

Ecossexualidade: quando surgiu o termo e o que diz o Manifesto Ecossexual

Ecossexualidade: quando surgiu o termo e o que diz o Manifesto Ecossexual — Foto: Freepik

Quando Sergio Marone declarou em entrevista ser ecossexual, em junho de 2023, as buscas pelo termo no Google tiveram um pico. Isso porque pouco se fala sobre a nomenclatura. Segundo o ator, quando tomou conhecimento desse termo, logo se identificou.

A classificação “ecossexual” surgiu em 2008, quando as artistas performáticas norte-americanas Elizabeth Stephens e Annie Sprinkle declararam ter se casado com a Terra e criaram o “Manifesto Ecossexual”. Veja alguns trechos:

●“A Terra é nossa amada. Estamos louca, passional e ferozmente apaixonados e estamos agradecidos por essa relação todo e a cada dia. Para criar uma relação mútua e mais sustentável com a Terra, nós colaboramos com a natureza.Tratamos a Terra com gentileza, respeito e afeição.”

●“Como consumidores, nosso objetivo é comprar menos. Quando precisamos, compramos produtos ecológicos, orgânicos e locais. Nós nos conectamos e criamos empatia com a natureza.”

●“Para alguns de nós, ser ecossexual é nossa identidade (sexual) primária, enquanto para outros, não. Ecossexuais podem ser LGBTQ+, heterossexuais, assexuais e/ou outros. Convidamos e encorajamos ecossexuais a aparecerem.”

●“Eu prometo amar, honrar e cuidar de você, Terra, até que a morte nos coloque juntos, para sempre.”

Desta forma, o psiquiatra e comunicador Jairo Bouer faz um resumo sobre esse tipo de classificação: “Ecossexual são pessoas cujo foco de interesse não é tanto [sobre] as pessoas, mas a natureza, o meio ambiente. É, na verdade, uma grande relação afetiva com o que está por fora, que é o meio ambiente.”

“Está muito relacionada à maneira como a pessoa se relaciona entre si e com o ambiente, um desenvolvimento de uma sexualidade mais saudável. É um termo que já existe há um tempo, mas que veio à tona, sem dúvida, com a declaração do Sergio Marone”, acrescenta a sexóloga Carla Cecarello. Segundo ela, o termo é pouco explorado: “A partir de 2017 é que ele surge em alguns documentários e filmes, através das artes, e foi ganhando um pouco mais de espaço.”

Sapiossexual: termo surgiu em 1998 e só ganhou força no ano de 2008

Sapiossexual: termo surgiu em 1998 e só ganhou força no ano de 2008 — Foto: Freepik

Outra expressão que gerou curiosidade entre 2022 e 2023 foi o termo sapiossexual. Isso porque famosos como Bela Gil, Key Alves e Karol Conká se declararam dentro dessa definição. A palavra é formada pelo prefixo sapien (do latim), que significa inteligência.

A terminologia teria sido usada pela primeira vez por Darren Stalder, um engenheiro do Seattle, Estados Unidos, em 1998, como forma de descrever como sentia atração por outras pessoas. Em um post no seu blog da rede social LiveJournal, em 2002, Darren Stalder citava uma “mente incisiva, inquisitiva, perspicaz e irreverente” como atraente para ele, e não os atributos físicos.

O termo teve maior notoriedade a partir de 2008, quando a escritora erótica Kayar Silkenvoice, que se assumiu sapiossexual e declarou nunca ter tido um sexo ruim por isso, criou um site chamado Sapiosexual.com.

Jairo Bouer reforça que a atração dos sapiossexuais é direcionada para pessoas sábias: “A inteligência é o grande fator de atração, a intelectualidade tem um peso.” A sexóloga vai além ao comentar esse tipo de atração voltada para pessoas com uma “inteligência e uma educação diferenciadas”.

“Esse termo é pouco conhecido, mas muita gente se sente atraída por pessoas assim, justamente porque tem a questão da educação, da inteligência e traz um status. É como se a pessoa estivesse numa prateleira acima de qualquer outra pessoa e isso traz um certo poder”, destaca Carla Cecarello.

“Não necessariamente, mas muitas pessoas entendem que ao se sentirem atraídas por esse tipo de pessoa, elas conseguem um espaço melhor. Então vemos outros pontos interessantes”, analisa a especialista, acrescentando que muitas vezes o sapiossexual pode ter baixa autoestima: “E ele busca através da atração, por pessoas desse tipo, um lugar diferenciado na sociedade também.”

Abrossexualidade: fluidez sexual e fácil adaptação a diversas orientações sexuais

Abrossexualidade: fluidez sexual e fácil adaptação a diversas orientações sexuais — Foto: Freepik

A abrossexualidade é caracterizada por uma certa fluidez, aponta Carla Cecarello. “Como se a pessoa num momento está numa determinada orientação sexual e num outro pode estar vivenciando outra, tem uma certa plasticidade, uma fluidez. São pessoas que se adaptam mais facilmente a orientações sexuais diferentes”, explica ela.

Jairo Bouer dá um exemplo para uma melhor compreensão desta fluidez: “Então, hoje eu me entendo como bissexual, amanhã eu me entendo como pansexual e depois eu posso me entender como assexual. Eu posso me enxergar de diversas formas ao longo da minha trajetória, da minha vida, do tempo.”

Cecarello acrescenta que essa fluidez é mais comum entre mulheres do que homens: “As mulheres têm, sem dúvida, uma capacidade não só em termos de sua sexualidade, mas de comportamento como um todo, de se adaptar mais.”

O surgimento do termo “fluidez sexual” foi atribuído à Lisa M. Diamond, professora de psicologia e estudos de gênero da Universidade de Utah, nos EUA. Ela começou a estudar a fluidez sexual no início da década de 1990 e em 2008 lançou o livro “Sexual Fluidity: Understanding Women’s Love and Desire” (“Fluidez sexual: compreendendo o amor e o desejo das mulheres”), no qual aborda como o amor e a atração são fluidos e podem mudar com o tempo para algumas mulheres.

A sexóloga acrescenta que o termo não é tão antigo. “Por volta de 2011 ou 2012, se não me engano, passou a ter uma discussão em torno disso, mas mesmo assim ainda é pouco conhecido. As pessoas acabam, muitas vezes, se encaixando em outros termos, que de alguma forma podem também remeter a esse tipo de fluidez sexual.”

Demissexual: segundo a etimologia, o termo é usado para pessoas ‘meio sexuais’

Demissexual: segundo a etimologia, o termo é usado para pessoas ‘meio sexuais’ — Foto: Freepik

“Demissexual é a pessoa que se atrai sexualmente por pessoas com quem ela tem uma conexão, um vínculo afetivo”, explica Jairo Bouer. “Está muito relacionado ao fato de a pessoa sentir atração sexual só quando sente que existe um envolvimento ou uma conexão afetiva emocional com a pessoa”, complementa Cecarello.

Anthony Bogaert, pesquisador da sexualidade humana e professor da Universidade Brock, em Ontário, no Canadá, fez um amplo estudo sobre assexualidade e, segundo ele, o termo demissexual surgiu principalmente no site Aven (sigla em inglês de Visibilidade Assexual e Rede de Educação), com a origem do termo aparecendo em uma postagem no fórum a partir de 2006, entre ativistas assexuais. Isso porque, na época, o público do site estava descobrindo como o espectro assexual poderia ser diverso.

“É um termo já mais antigo do que os que falamos anteriormente. Surge por volta de 2005 e 2006, e mostra que as pessoas não conseguem formar nenhuma atração sexual pelo outro se realmente antes disso tudo ela não formar uma conexão emocional”, explica a sexóloga.

Na etimologia, a palavra demissexualidade é composta pela união do prefixo “demi”, que tem o significado de “meio” (demi: usado em inglês a partir do meio do século XIV e em termos técnicos do antigo francês com o significado de “meio”, no século XII) com sexualidade. O que indica que pessoas demissexuais são “meio sexuais”, ou seja, parcialmente sexuais.

“A pessoa demissexual até sente muitas vezes que é assexual, mas a partir do momento em que ela percebe que consegue estabelecer um vínculo emocional como um pré-requisito básico para o relacionamento, a atração sexual vem em consequência. Hoje, vemos que muitas pessoas vivenciam esse tipo de situação, é mais comum do que a gente imagina”, aponta a psicóloga.

‘Esses termos são construídos ao longo do tempo por teóricos e especialistas’

Quando uma expressão ganha maior visibilidade, não demora para surgirem críticas na internet e questionamentos sobre a necessidade de tais termos. “Muitas dessas classificações, orientações, definições vêm de manifesto de grupos historicamente construídos. São termos que estão aí há um tempo, que eventualmente ganham destaque quando uma pessoa conhecida na mídia se identifica ou se classifica dessa forma”, afirma Jairo Bouer.

Ele reforça que não são “invenções” que surgem de uma hora para outra. “Na verdade, são termos que são construídos ao longo do tempo, muitas vezes já vistos e revistos por teóricos, por especialistas, por profissionais que trabalham nessa área da sexualidade, mas é uma discussão interessante”, pondera.

O especialista acredita que o surgimento dessas definições pode colaborar para um melhor entendimento das pessoas sobre a própria sexualidade ao entrarem em contato com o campo de conhecimento e com uma classificação que as define melhor do que a que tinham anteriormente.

“Classicamente, só havia o modelo binário: o indivíduo era homo, hétero ou, então, bissexual, que era a pessoa que ficava no meio do caminho. Então, a sociedade está mais acostumada com essa classificação. Mas os pesquisadores mais antigos já falavam que não haviam só essas três possibilidades, que a sexualidade tinha muito mais a ver com todas as variações possíveis.”

Segundo a psicóloga, com o movimento LGBTQIA+ ganhando força, essas questões vieram mais à tona. “Claro que a homossexualidade existe desde que o mundo é mundo. As pessoas recriminavam e deixavam de lado, mas hoje está um pouco diferente. As pessoas do movimento LGBTQIA+ querem ganhar o seu espaço, com todo o direito, e acabam trazendo à tona uma série de questionamentos”, destaca.

Sexóloga avalia as críticas ao surgimento das ‘novas’ nomenclaturas

O surgimento de “novos” termos pode confundir as pessoas mais conservadoras, acredita Carla Cecarello. “Justamente porque foge do conhecimento. E esses conceitos não são expostos de uma maneira que venha a agregar, simplesmente tudo é jogado e não podemos esquecer que a nossa sociedade é muito conservadora”, reforça ela.

“Para quem vem das gerações mais antigas, de uma educação mais preconceituosa, vai ter uma dificuldade imensa em entender isso tudo, principalmente pela forma como a própria universidade, os próprios estudos e a mídia passam. Não é trazido dentro de um contexto com seriedade, então as pessoas acabam estabelecendo uma crítica muito maior do que deveriam.”

A especialista alerta que o problema não é a aparição das nomenclaturas: “Há uma falha muito grande, não no fato do termo existir ou não, mas na maneira como isso é passado para a sociedade. As pessoas têm uma grande dificuldade porque esbarra em questões enraizadas e que não são tão simples. Surge aí uma notícia e eu vou simplesmente aceitar? Não é assim que a banda toca.”

Sexualidade e identificação: a busca de um profissional é necessária?

Os especialistas afirmam que a busca de um profissional não é fundamental no primeiro momento. Antes de mais nada, o que passa a ter mais relevância é como as pessoas se identificam dentro das variadas possibilidades. “Se a gente pensar historicamente, elas tentavam se encaixar dentro do modelo hétero ou homo, e em algum momento se entendiam como bissexuais. À medida que você tem uma ampliação desses conceitos, as pessoas percebem que suas vivências, emoções, que sua sexualidade pode ter mais a ver com determinada classificação do que outra”, aponta Jairo Bouer.

Carla Cecarello ressalta que a busca pelo conhecimento é essencial no momento em que a pessoa se depara com o surgimento de novos termos: “É muito importante que ela primeiro vá conhecer do que se trata, eu bato muito nessa tecla. E aí você vai enxergando se você se identifica com aquilo ou não.”

A partir daí, a sexóloga acredita que um profissional, com a soma do conhecimento adquirido pela pessoa, pode reiterar o que ela sente. “É uma conjunção. O conhecimento através de profissionais podem trazer uma maior segurança para que ela possa dizer como se sente identificada, esse é o ponto”, explica.

Mas o psiquiatra reforça que a classificação é sempre uma classificação. “É um jeito um pouco limitador e arbitrário de você definir uma determinada questão. Em volta desses termos mais clássicos orbitam uma série de possibilidades”, acrescenta Jairo, ao dar o exemplo da abrossexualidade.

uma maior segurança para que ela possa dizer como se sente identificada, esse é o ponto”, explica.

Mas o psiquiatra reforça que a classificação é sempre uma classificação. “É um jeito um pouco limitador e arbitrário de você definir uma determinada questão. Em volta desses termos mais clássicos orbitam uma série de possibilidades”, acrescenta Jairo, ao dar o exemplo da abrossexualidade.

“Tem o indivíduo que vai mudando ao longo da vida. As pessoas podem mudar ao longo da trajetória e não necessariamente precisam de um especialista. Tem muito mais a ver com a percepção que elas têm em relação às emoções, aos afetos e à sexualidade delas.” Libertação ou prisão? Especialistas avaliam como é possível fugir dos rótulos

Quando uma pessoa se reconhece dentro de uma classificação, é um caminho libertador do ponto de vista clínico, afirma Jairo Bouer: “É o que a gente percebe nas conversas, porque elas se sentem mais acolhidas, compreendidas por elas mesmas e pelos outros.” Carla Cecarello concorda: “Sem dúvida que é muito libertador, porque ela vai realmente se sentir encaixada, pertencente e isso faz toda a diferença para a vida dessa pessoa.”

Embora seja uma forma de definir e rotular, para muita gente esse reconhecimento tem um peso de pertencimento. “Sabendo que classificações são arbitrárias, de uma certa maneira, para algumas pessoas, seja acolhedor. De repente você percebe que não está sozinho, é uma coisa meio identitária, você se enxerga num grupo”, afirma ele.

A sexóloga aconselha sobre o melhor caminho para evitar cair em rótulos e indica que, acima de tudo, é necessário a pessoa “se conhecer e entender” o que se passa com ela: “Eu preciso aprender para não entrar simplesmente numa conversa do outro. Tem que se tomar cuidado, porque muitas vezes os famosos lançam esse tipo de coisa e nem conhecem direito os termos. A pessoa precisa entender os seus sentimentos e conhecer o termo no qual se sente mais identificada para se sentir liberta, e não rotulada.”

E o rótulo é um risco, reforça Jairo Bouer, mas é um contraponto que faz parte das questões abordadas anteriormente. “É essa dicotomia o tempo inteiro: de um lado você percebe que talvez fique um pouco mais tranquilo e feliz ao se sentir pertencente a um determinado grupo; do outro, você está se rotulando ou os outros estão te rotulando, e isso pode ser o contrário do libertador. Se a classificação te ajuda, ótimo. Se ela te limita e isso te incomoda e aprisiona, por que você tem que ter a necessidade de se classificar de uma determinada maneira? Essa é a nossa batalha individual e única.”

Fonte: Gshow