Na prática, nada. A maior parte do mundo já havia desativado, há tempos, medidas como uso obrigatório de máscaras e passaportes vacinais

No dia 5 de maio de 2023, exatamente 1221 dias após o 30 de janeiro de 2020, data que marcou o início da pandemia de Covid-19, a Organização Mundial de Saúde decretou oficialmente o fim da emergência sanitária global. O que muda? Na prática, nada. A maior parte do mundo já havia desativado, há tempos, medidas como uso obrigatório de máscaras e passaportes vacinais. A última grande onda de casos e mortes havia ocorrido no final de 2021, com a variante Ômicron. Depois disso houve ondas menores, mas, no geral, os números foram caindo. Principalmente, hospitalizações e mortes. A queda consistente levou a OMS a encerrar a condição de emergência.

Se o anúncio não muda muito o dia-a-dia do cidadão, alivia as obrigações impostas aos membros da OMS. Também representa um momento simbólico e educativo.

Talvez a primeira lição seja de como é fácil desviar a atenção do público do que realmente importa, usando polarização política, teorias da conspiração e ataques à reputação de especialistas. A origem do vírus é um bom exemplo. As duas hipóteses existentes — escape de laboratório de pesquisa, ou disseminação a partir de um mercado ilegal de animais silvestres — têm um ponto em comum que fica de fora do debate público. Será bastante difícil bater o martelo definitivamente, embora a maior parte das evidências até agora aponte para o mercado. O que se exclui da figura, entretanto, é o fato de que, qualquer que seja a real origem, a culpa é do ser humano. Ambas as condições envolvem erros humanos graves, um de biossegurança, outro de ética e saúde pública. Nenhum é aceitável.

A segunda lição é que com a volta à normalidade, esquecemos rapidamente o descalabro que foi a condução da pandemia no Brasil. Das 6,5 milhões de mortes oficialmente atribuídas à Covid-19, 700 mil são nossas. Ambos os números estão provavelmente subestimados, se levarmos em conta o excesso de mortes no período pandêmico, na comparação com anos anteriores. Nessa conta, a estimativa média da OMS para vítimas da Covid no mundo sobe para 15 milhões. Se o total brasileiro seguir a mesma escala — estimativa conservadora, porque sabemos que o Brasil provavelmente saiu-se pior do que a média mundial — pode-se estimar um número de aproximadamente 1,7 milhão de vidas destruídas pelo vírus entre nós.

Além do número de mortos, não devemos perdoar a conduta anticientífica do governo Bolsonaro, de ministros da Saúde, do Conselho Federal de Medicina e de diversos médicos, cientistas, comunicadores, associações e até hospitais privados que promoveram curas milagrosas, atacaram a eficácia e segurança das vacinas e polarizaram o país com discurso negacionista. Também não devemos esquecer a quantidade de oportunistas midiáticos que usaram a mesma tática de polarização para sinalizar virtude e promover a humilhação pública de quem ousava expressar dúvida sobre o uso de máscaras ou mesmo dúvidas legítimas — e que merecem ser esclarecidas — sobre vacinação.

O maior aprendizado da pandemia, que deveria servir para que o país esteja preparado para uma próxima emergência, ainda parece muito distante. Precisamos melhorar a estrutura das escolas e do transporte público. Precisamos incorporar comunicação de risco e saúde, vigilância genômica, estratégias reais para incubar uma iniciativa de fabricação autônoma e autossustentável de vacinas para a América do Sul, seguindo o exemplo do continente africano, que deve inaugurar em breve as instalações para manufatura de vacinas genéticas na África do Sul.

O fim da emergência sanitária deve ser comemorado. É um marco de sucesso de colaboração internacional, da ciência e tecnologia. Mas é preciso olhar para trás antes de seguir em frente. Só tendo consciência de como chegamos aqui é que poderemos mapear o futuro.

Fonte: O Globo