As educadoras alertam para o aumento no número de novos casos após período de recesso escolar

Educação sexual nas escolas é menor do que imaginamos | Nova Escola

O abuso e a exploração sexual contra crianças e adolescentes são um dos maiores dilemas sociais que o Brasil precisa encarar há décadas. Apesar dos esforços, o país ainda hoje tem falhado demasiadamente no que se refere à garantia de proteção da honra dos corpos infantis, viabilização de políticas públicas eficazes de prevenção e leis duras com penalidades à altura da gravidade do problema.

De acordo com dados do mais recente senso do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o Brasil tem uma população de 210,1 milhões de habitantes, dos quais 53.759.457 têm menos de 18 anos de idade.

Um levantamento feito pelo Unicef (Fundo das Nações Unidas para a Infância) revelou que entre os anos de 2017 e 2022, em todo o território nacional foram registrados 179.277 casos de estupro de vulnerável com vítimas de até 19 anos – uma média de quase 45 mil casos por ano. Dos envolvidos, crianças representam 62 mil das vítimas.

Com relação ao perfil predominante das vítimas, mais da metade delas são crianças negras (50,9%), do sexo feminino (81,8%) e com até 13 anos (53,8%), segundo dados levantados pelo 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).

A maioria das violações acontecem dentro das próprias casas. 87% dos agressores são pais, padrastos, tios, ou seja, membros da própria família.

Nesse sentido, a escola, onde as crianças passam a maior parte dos seus dias, torna-se espaço primordial de conscientização, é o que dizem os especialistas. Para mergulhar mais no assunto, conversamos com três diferentes profissionais que atuam diariamente com a temática.

Sinária Morais, que é pedagoga de formação, pós-graduada em Educação Infantil, e em psicopedagogia, compreende que falar de sexualidade no ambiente escolar é de suma importância, pois a sexualidade faz parte de todo o corpo humano como também de todo o processo da construção humana. Segundo ela, nesse processo existem várias situações que envolvem a sexualidade. “Quando criança, ela está aprendendo a conhecer o seu corpo, as partes de seu corpo, posteriormente ela quer entender a parte do corpo de seu amiguinho (a), então vem a fase ao qual os hormônios começam a aflorar, e a imaginação sexual começa a acontecer”, explicou.

A docente afirma que a sociedade, de forma deturpada, até mesmo pela propagação de fake news, infelizmente tem pregado que a educação sexual nas escolas é para “ensinar o educando a fazer sexo”, e não com a instrução do que é a sexualidade em suas esferas e expressões, narrativa essa na qual ela discorda. “Até mesmo porque o sexo em si é somente uma expressão da sexualidade, o restante é sexualidade no global, no geral. Então, acredito que é de suma importância falar sobre educação sexual nas escolas, não há mais tempo para tabus e falta de informação”, argumentou.

Quem é responsável pela educação sexual?

Mas diante de tudo isso fica aquela indagação: quem é responsável pela educação sexual das crianças: as famílias ou as escolas? A educadora alega que é algo para refletirmos, os índices de violência sexual, infelizmente em sua maioria, vêm da própria família, de quem era para proteger e amparar essa criança, e a escola está preparada para abordar o tema de maneira pedagógica e didática.

“E essa educação ela tem urgência e precisa acontecer. Ao ter contato com questões relacionadas a educação sexual, a criança vai adquirindo consciência de seu corpo, dos valores que acredita, consciência do todo da sociedade em que está inserido, reflete sobre o impacto de suas ações e atitudes no corpo dele e dos demais a sua volta, dessa forma, acredito que diminui os riscos de ISTs, gravidez precoce, diminuição da violência sexual, pois saberão lidar com o próprio corpo e valorizar-se e defender-se acima de tudo”, explanou.

A professora Sinária aproveitou para tecer críticas ao baixo quantitativo bibliográfico sobre o tema, relacionando-o com a escola. “A falta de acervos que abordam o tema relacionando-o a escola me deixa frustrada, acredito que como eu, outros professores também sintam essa mesma necessidade, até mesmo a formação continuada abordando a temática, discutindo intencionalidades e desenvolvimento de ações pedagógicas abrangendo a temática. Também porque falta da nossa formação reinventar e reciclar. O preconceito surge também por profissionais da área”, lamentou.

Educação para os afetos

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A sexóloga Regiane Rodrigues, do Instituto Cultural Barong, concorda: “Quando a gente fala de educação sexual, estamos falando de educação para os afetos, educação para os relacionamentos, prevenção do HIV, ISTs, à gravidez precoce, abuso sexual, etc, e não de educação para o sexo, para a atividade sexual…” Regiane, que também é psicóloga e pós-graduada em psicodrama, garantiu que trata-se de educação para a vida, já que a sexualidade é uma das, ou talvez a mais importante parte da personalidade humana. “Ela que vai definir o que eu sou, o que sinto e como vou agir. Ou seja, é o tripé: pensar, sentir e agir. Tudo isso é sexualidade e não somente o ato sexual por si só”.

“Por isso que a educação para a sexualidade é importante desde a infância e principalmente na adolescência. Na infância vamos construir uma sexualidade voltada ao autocuidado e autoconhecimento, a relação com o próprio eu; já na adolescência vou direcionar o meu objeto de desejo para o outro. Portanto, em todas as fases da vida a educação sexual é importante”, completou.

De acordo com a psicóloga, atualmente, à nível nacional estamos enfrentando um excesso de conservadorismo que dificulta estes diálogos. “Essa onda de conservadorismo que carrega muitas questões religiosas e de valores, do que se deve ou não falar, é um dos maiores desafios nos dias de hoje. Mas, pensamos que a formação deste educador também perpassa o treino para lidar com essa realidade. E dentro de uma questão de respeito aos valores do outro, conciliar o que a ciência fala e o que a religião prega, eu acho que é dos objetos mais importantes, principalmente a prática da comunicação não violenta ao trazer informações cientificas e legais, em termos de lei”, finalizou.

Conversamos também com a escritora Beatriz Cruz, estudante de serviço social, educadora social, e uma das idealizadoras do “Lá em Casa Tá Tudo Bem”, projeto voltado à promoção da educação sexual infantil, que também entende a educação sexual como ferramenta de transformação.

“Esta é a principal ferramenta contra o abuso sexual infantil”, falou. Beatriz afirma que a escola, onde as crianças e adolescentes passam a maior parte dos seus dias, espaço propício para este diálogo. “90% dos casos acontecem em ambiente familiar. É importante que a educação sexual esteja presente nas escolas, para que mais crianças tenham acesso à informação de proteção e autocuidado”.

“Desde os primeiros relatos, a maioria dos casos são de vítimas de seus próprios cuidadores, familiares ou conhecidos da família, como vizinhos próximos. E o principal motivo para o projeto acontecer é justamente esse, como diz o nome, esperamos que ‘lá em casa esteja de fato tudo bem’. Eu, Beatriz, sou sobrevivente de um abuso que durou 15 anos efetuado pelo meu próprio pai e entendo fortemente a necessidade da educação sexual na luta contra a violência (também) em âmbito familiar”, relatou.

Relatos no volta às aulas

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Ela ainda complementou refletindo acerca do aumento significativo no número de novos casos de abuso, após o período de férias letivas dos pequenos. “Nas voltas às aulas, os números de denúncias tendem a crescer porque a criança que está ali no âmbito familiar de violência, não pode reportar. Infelizmente, o período de férias, a pandemia, os finais de semana, viagens com parentes, dentre outros, são ambientes onde os abusadores se sentem mais confortáveis. Na volta às aulas, é de extrema importância que os educadores utilizem de dinâmicas para que as crianças contem como foram suas férias, se aproximem mais das crianças em sua individualidade, onde os educadores possam observar possíveis sinais de violências, como novos hábitos estranhos, medos e timidez onde não havia antes”.

A educadora sexual considera ser uma agente de mudança no Brasil de hoje algo desafiador, a questão tem muitas facetas e os desafios são diversos para quem luta em prol da garantia dos direitos da criança e do adolescente. “A negligência é um dos principais desafios, onde o estado nega a importância desse tema, onde as famílias não entendem a importância desse tema ou se beneficiam da ausência dele, onde temos pessoas com grana e poder que também se beneficiam da fragilidade de crianças e que consomem conteúdo pornográfico infantil e/ou exploram crianças sexualmente; mas também, de pensamentos equivocados religiosos cristãos que acreditam fortemente que a educação sexual erotiza, expõe e influencia crianças a serem gays. E quem perde com tudo isso, são as crianças que pela constituição, são de nossa responsabilidade! Educadores também enfrentam dificuldades em abordar o tema por falta de incentivo, de conhecimento, e pela falta de fomento na temática”, disse Beatriz.

O silêncio não é o caminho

Para ela, o silêncio não resolve a questão, muito pelo contrário, constrói muros que ampliam o problema e consequentemente nos distanciam ainda mais de um país onde a criança possa ser livre de fato. Por isso, para avançarmos na resposta ao combate ao abuso e exploração de vulneráveis, segundo a entrevistada, é necessário primeiramente reconhecermos isto enquanto problema social, e dada a sensibilidade e complexidade do tema, Beatriz aposta em uma abordagem natural e humanizada.

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“Antes da abordagem, é necessário que o cuidador entenda a importância de abordar o assunto. Autoconhecimento, prevenção ao abuso sexual, prevenção a gravidez precoce, prevenção de ISTs, entre outros, são os motivos do porquê abordar a educação sexual. A partir disso, é importante abordar de forma leve, assim como abordamos qualquer outro assunto! Costumo falar para as crianças que o nosso corpo não carrega nada de ruim para que tenhamos medo ou vergonha dele. Com isso, apresentar as partes íntimas através de ilustrações, com os devidos nomes, explicar que são partes íntimas porque merecem ser cuidadas e protegidas, de acordo com a idade, ensinar sobre toque seguro e toque não seguro…

Ofereço oficinas e através do nosso livro Carro Cris abordamos exatamente isso com crianças de forma lúdica, o livro conta como um carro descobre suas partes íntimas de uma forma divertida, recomendo a ferramenta para auxiliar educadores e familiares”.

“A educação sexual precisa estar presente nas escolas públicas e privadas! Os canais de denúncia precisam ser mais democratizados! Nós precisamos começar a enxergar nossas crianças como seres humanos! Criança tem querer sim! Criança pode chorar, pode rir, pode gostar ou não gostar de algo, crianças podem se recusar a querer falar com uma pessoa e não fazer só porque é “mais educado”. Estamos ensinando crianças a serem obedientes e não questionadoras. Enquanto uma criança obedecer um abusador e não questionar o porquê de aquilo estar acontecendo, estaremos errando enquanto sociedade”.

Ao seu ver, ainda há muito para aprender, e educadores, profissionais e familiares não podem se abster dessa luta. “Vamos abrir nossas mentes para o tema e estudar, conhecer as ferramentas que existem, como nosso livro Carro Cris, conhecer profissionais especializados, mas principalmente, conhecer melhor as crianças que os rodeiam e se responsabilizar pelo cuidado delas”, finalizou.

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Kéren Morais (keren@agenciaaids.com.br)

Dica de entrevista

Sinária Morais

E-mail: sinaria.pedagoga@gmail.com

Regiane Rodrigues

E-mail: regiane-garcia@uol.com.br

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Beatriz Cruz

E-mail: laemcasatatudobem@gmail.com ;

Instagram: @laemcasatatudobem