Mais uma vez a esperança venceu o medo e o Brasil voltará a ser governado por forças progressistas e humanitárias, quando até agora tudo era trevas e retrocesso social em todos os seus indicadores. Não que a partir de agora viveremos no paraíso, longe disso. Mas o fato de termos saído do inferno já é um excelente começo para que voltemos a ser respeitados internacionalmente e que o povo brasileiro volte a ter orgulho de seu país. Assim que passar a ressaca de tanto festejar, teremos muito a fazer para que a saúde pública tenha o respeito que merece e que as pautas mais importantes e urgentes da luta contra a AIDS voltem a ter o destaque devido no próximo governo.
A mãe de todas as lutas, sem dúvida, é o fortalecimento do Sistema Único de Saúde, base fundamental para todas as ações de prevenção, assistência e direitos humanos no âmbito da epidemia de AIDS. Não fosse o SUS a situação epidemiológica no Brasil estaria equivalente a alguns países da África subsaariana, da mesma forma que se não fosse o SUS o enfrentamento à COVID-19 teria sido muito mais desastroso do que tentou fazer o capitão. Enfim, não fossem a abnegação dos profissionais de saúde, a estrutura e a expertise do melhor plano de saúde público do mundo teríamos ultrapassado, certamente, a casa de um milhão de mortos. Outro ponto é que se derrube a Emenda Constitucional 95, que congelou o teto dos recursos da Saúde como se não houvesse aumento populacional, envelhecimento desse mesmo público, além de novas e inesperadas demandas, como ocorreu com a COVID-19. E, claro, a restituição de meio bilhão de reais à luta contra a AIDS, recentemente cortada do orçamento federal para financiar o orçamento secreto.
O fracionamento no fornecimento dos medicamentos do coquetel antirretroviral voltou a ser realidade no país, obrigando profissionais de farmácia a descumprir seu código profissional através da distribuição de comprimidos acondicionados em saquinhos de chup-chup sem data de validade e sem bula. E, pior, fazendo com que pessoas vivendo com HIV/AIDS tenham que se deslocar para suas farmácias públicas, gastando energia, tempo e dinheiro extras que nem sempre estão à disposição, afetando diretamente a adesão ao tratamento. Falando em adesão, já não passou da hora de retomar essa iniciativa tão exitosa dos primórdios da epidemia? As pessoas estão abandonando o tratamento em número cada vez maior, seja pela inerente dificuldade em se tomar remédios a longo prazo, seja pela COVID, pelo estigma que ainda existe e ainda impacta a vida das pessoas com HIV/AIDS.
Que o diga também a política de PreP/PeP, que precisa ser revista por conta da dificuldade de retenção ao tratamento das pessoas que optaram por essa forma de prevenção. Abandonam a profilaxia e não voltam a usar preservativos. Prevenção não é só fornecer medicamentos para não contrair o vírus. É preciso que essa política seja realmente combinada com o uso de preservativos e, para isso, temos que voltar a falar sobre eles de forma incisiva e abrangente, além de retomar os projetos para populações mais vulneráveis, tudo isso sob a ótica dos respeito aos direitos humanos. Lembrando que as infecções sexualmente transmissíveis estão bombando e, assim como todas as doenças infecciosas estão negligenciadas não somente no Brasil, mas no mundo todo. Talvez seja a hora de se concretizar a tão sonhada Conferência Nacional de AIDS para atualizar diretrizes, normas e protocolos em todas as vertentes da luta contra a epidemia, avaliando o impacto que a COVID-19 e o descaso do atual governo provocaram nas ações estratégicas e de ponta.
Uma coisa é certa: haverá muito a reconstruir. Estaremos vivendo um pós guerra contra o fascismo, entre as ruínas sociais e morais deixadas por esse bando que se apossou do poder por meio de notícias tão falsas como uma facada sem sangue. E essa reconstrução será maravilhosa, vi dar gosto participar da retomada do Brasil pelos verdadeiros brasileiros e ver a luta contra a AIDS voltar a ter seu lugar ao céu, assim como todas as causas sociais e de saúde. Como diz minha querida amiga SoroposiDHIVa: por um Brasil onde viver com HIV/AIDS não volte a ser uma sentença de morte. E encerro novamente citando Guilherme Arantes:
‘Amanhã, mesmo que uns não queiram,
Será de outros que esperam
Ver o dia raiar
Amanhã, ódios aplacados
Temores abrandados
Será pleno, será pleno’
* Beto Volpe é ativista e escritor.
luiz_volpe@uol.com.br