Para tentar encurtar e baratear o complicado processo que leva à aprovação de um novo remédio, capaz de consumir centenas de milhões de dólares, alguns cientistas têm apostado na descoberta de novas utilidades para fármacos que já estão no mercado. O chamado reposicionamento de drogas já tem algumas histórias de sucesso, mas a abordagem ainda esbarra no fato de que ainda se sabe relativamente pouco sobre a interação entre os medicamentos e o organismo.
Alguns dos medicamentos mais conhecidos do mundo podem ser encaixados nessa categoria. É o caso do sildenafil (mais conhecido como Viagra), que revolucionou o tratamento para disfunção erétil, mas originalmente foi testado para tratar pressão alta e dores no peito causadas por problemas cardíacos —os efeitos sobre a ereção foram notados durante os primeiros testes clínicos para os fins originais do remédio. Já a aspirina, usada durante décadas contra dor e febre, pode ser usada como remédio preventivo contra derrames e coágulos sanguíneos.
“Mas o fato é que o mercado ainda não está cheio de exemplos como esses”, pondera Helder Nakaya, pesquisador do Hospital Israelita Albert Einstein e da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP.
“Isso provavelmente tem mais a ver com o fato de que a gente ainda não entende direito como muitas drogas funcionam. Curar doenças é uma coisa difícil porque, muitas vezes, você não sabe exatamente a origem do problema, e isso está diretamente ligado ao alvo com o qual o medicamento interage no organismo.”
Apesar disso, o reposicionamento de fármacos tem sido explorado porque tem o potencial de pular algumas etapas do processo de desenvolvimento de um remédio.
Se determinada substância já é considerada segura para uso em seres humanos e está no mercado, por exemplo, os testes iniciais com pacientes poderiam ser vistos como algo já resolvido.
Nem sempre é o que acontece, já que a dose ideal ou segura para uma doença pode ser bem diferente da usada no problema de saúde original. Mesmo assim, o reposicionamento pode facilitar fases prévias, como os estudos de toxicidade (destinados, basicamente, a saber quais doses da substância são tóxicas, e como) ou os testes in vitro e com animais.
“Uma estratégia muito usada é a chamada ‘target-based’ [baseada em alvos]”, explica o farmacêutico Thiago Mattar Cunha, professor da USP de Ribeirão Preto.
Grosso modo, nesses casos, os pesquisadores usam bibliotecas de fármacos já aprovados para uso e verificam se as moléculas do organismo com as quais eles interagem em seu emprego conhecido também são importantes em outras doenças. Se esse “match” acontecer, outros testes podem seguir adiante.
Mesmo nesses casos, o trabalho subsequente muitas vezes acaba revelando que a compreensão inicial sobre a ação do fármaco estava errada —o que nem sempre é um problema, desde que ele funcione, é claro.
“Um caso interessante é o da pregabalina, originalmente usado contra convulsões”, diz Mattar Cunha. “A ideia é que ele aumentava as concentrações de Gaba [um neurotransmissor, ou seja, mensageiro químico do cérebro] no sistema nervoso central. Descobriu-se que era um ótimo analgésico para dor crônica, e que o mecanismo de ação dele era bem diferente.”
Segundo Helder Nakaya, outra pista intrigante para o reposicionamento de fármacos veio do estudo do cérebro de bebês que tinham morrido por síndrome da zika congênita, ou seja, pelas lesões cerebrais desencadeadas pelo vírus da doença.
“As análises indicaram um possível envolvimento do glutamato, substância que pode atuar como neurotransmissor e que é tóxica em concentrações altas.”
O passo seguinte foi tentar usar um remédio contra Alzheimer, cuja função é justamente bloquear a “conversa” do glutamato com os neurônios, em camundongas grávidas infectadas com o zika. Ao que parece, funciona —e, pelo que se sabe, o fármaco é seguro para uso em mulheres na gestação. “Cada passo desses dá uma empolgação maior de que a ideia pode funcionar, embora o processo seja longo”, diz o especialista.
Para tornar esse processo mais rápido, os cientistas têm apostado cada vez mais na inteligência artificial, usando softwares capazes de varrer automaticamente enormes bases de dados sobre as doenças que querem estudar, os fármacos usados para elas e os genes (grosso modo, trechos funcionais de DNA) com os quais essas substâncias interagem.
Foi o que fizeram recentemente Nakaya e seus colegas, ao conduzir uma análise de milhões de artigos da literatura científica sobre problemas psiquiátricos como mal de Alzheimer, depressão e esquizofrenia, achando correlações entre 722 drogas e 1.588 genes.
“A ideia era montar mapas de conhecimento envolvendo genes, drogas e doenças. Ou seja, se há uma droga usada para tratar determinada doença, afetando certo gene, será que essa mesma droga poderia ser empregada contra outro problema no qual os mesmos genes estão ativados?”, explica.
Um sinal de que os resultados faziam sentido foi o fato de que os pesquisadores, depois da análise inicial, avaliaram bases de dados sobre ensaios clínicos (ou seja, testes de medicamentos em pessoas, ainda em andamento).
Eles verificaram que as drogas apontadas como promissoras, em vários casos, de fato já estavam sendo testadas, embora não houvesse uma menção direta ao uso delas na literatura científica.
Outra abordagem que tem crescido, diz Mattar Cunha, são os chamados testes fenotípicos in vivo. Apesar do nome complicado, a ideia é simples: testar o reposicionamento de fármacos em animais de laboratório que pertencem a uma linhagem que já é usada para o estudo de determinadas doenças (por suas características naturais ou por serem geneticamente modificados para isso).
“Nesses casos, você deixa de lado alvos específicos, já que em doenças complexas é difícil isolá-los, e simplesmente dá mais peso ao que funciona, sem necessariamente ter ideia de como funciona”, diz ele, citando como exemplo o canabidiol, derivado da maconha, cujo experimental tem se expandido muito.
Outra questão importante nos trabalhos sobre reposicionamento é como fazer com que empresas farmacêuticas se interessem em dar um novo uso a remédios antigos. É algo que, para a indústria, pode ser menos vantajoso do que lucrar com as patentes de um novo fármaco.
“Você não consegue obter uma patente nova por um uso novo, mas isso é possível se for demonstrado um mecanismo de ação diferente”, diz o pesquisador da USP de Ribeirão Preto. Em casos em que isso não é viável, o investimento público é essencial, afirma.
Fonte: Folha de S. Paulo